Entre Bolsonaro e a democracia, creiam: militares escolheriam a democracia
"E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer". O brocado autoritário que vai acima é da lavra de Jair Bolsonaro, presidente da República, durante cerimônia no 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, na Fortaleza de São José da Ilha de Cobras, no centro do Rio.
Não adianta. Ele não entende a democracia. Ponto final. Imaginem o que teria acontecido se, na Presidência da República, Lula tivesse dito em algum momento: "Democracia e liberdade só existem quando os trabalhadores querem". Como sua origem era o meio sindical, a leitura óbvia e necessária teria sido uma só: se o PT decidir, põe fim à democracia. Mas Lula não disse isso, certo? Nem por isso, é verdade, o PT deixou de aparelhar o Estado. E foi combatido — inclusive por este escriba.
Não há como dourar a pílula. Bolsonaro quis dizer o que disse e disse o que quis dizer, o que implica uma agressão múltipla à Constituição Federal. Fere o Parágrafo Único do Artigo 1º:
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Observem que não está escrito lá que todo o poder emana das "Forças Armadas".
Há um outro artigo que as implica diretamente com a questão democrática. É o 142:
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Como se nota, elas são garantias dos poderes constitucionais, não forças de tutela. Para que intervenham, inclusive, na garantia da lei e da ordem internas, é preciso que contem com a concordância dos demais Poderes. Que são civis.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente também eleito, tentou dourar a pílula, assegurando que a fala foi mal interpretada. E empregou a Venezuela como exemplo. Como, naquele país, as Forças Armadas ainda garantem o apoio a Nicolás Maduro, então vige uma ditadura.
O general é inteligente o bastante para saber que sua frase pode ser desconstruída sem muito esforço. Então ficamos assim, senhor vice-presidente: a democracia existe por vontade do povo; as ditaduras, por vontade dos militares. O que lhes parece? Há uma diferença que distingue a civilização da barbárie entre estas duas frases de sentidos semelhantes apenas na aparência:
1: Nas democracias, as Forças Armadas garantem os Poderes Constituídos;
2: só existem democracia e Poderes Constituídos se as Forças Armadas quiserem.
Na primeira, elas se subordinam à ordem democrática; na segunda, elas a tutelam. Os países que vivem a circunstância nº 1 são democracias; os que experimentam a nº 2 são ditaduras.
Contexto
O contexto da fala de Bolsonaro também é elucidativo. Ele não fala como chefe de Estado, mas como chefe de uma milícia política. Ainda fazendo referência ao vídeo pornô que espalhou Brasil afora, afirmou:
"A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia."
E aí veio o complemento:
"E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer".
Como se nota, Bolsonaro se dá o direito de determinar o que sejam amor à pátria, respeito à família e amor à democracia. Quanto aos países "que têm ideologia semelhante à nossa", devemos ficar no aguardo: assim que este gênio da raça definir a nossa "ideologia oficial", vamos ver de quais ele pretende se aproximar e se distanciar. Penso aqui em alguns compradores dos nossos produtos e que compõem mais da metade do nosso superávit comercial: China, países árabes e Irã. O Brasil deve repudiá-los, no cenário internacional, em razão das diferenças?
Que coisa! A cada dia, uma insanidade nova.
Sim, Bolsonaro já violou o Item 7 do Artigo 9º da Lei 1.079 ao espalhar um vídeo pornô. Agora atenta contra os valores expressos nos incisos II, III e IV do Artigo 4º da mesma lei. Lá está escrito:
"São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III – O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: IV – A segurança interna do país."
No fim das contas, está dizendo às Forças Armadas: "Enquanto vocês segurarem a minha onda, faço o que bem entender".
Asseguro ao presidente Jair Bolsonaro que não será assim.
Se preciso, o povo o derruba, segundo a Constituição. E as Forças Armadas vão garantir a Constituição, não um doido de plantão.
Se chegar a um ponto desejado por ninguém, os militares ficam com a democracia, e Bolsonaro cai.
Para encerrar: nos EUA tão admirados pelo presidente, se Donald Trump afirma algo semelhante, é deposto por um processo de impeachment. Inclusive com os votos dos republicanos, que não veem a hora de se livrar do seu próprio maluco.