Topo

Reinaldo Azevedo

Inquérito do STF é legal e urgente. Debatamos leis e Estado de Direito!

Reinaldo Azevedo

20/03/2019 16h31

Não deixa de ser curioso o súbito amor pelo Estado de Direito que resolveu tocar o coração de alguns quando o Supremo decide abrir uma investigação para saber quem patrocina a campanha que tenta desmoralizar o tribunal e quantos crimes se cometeram sob o manto da liberdade de expressão. Mas eu tranquilizo os corações aflitos e recomendo que voltem a sua atenção para agressões reais à legalidade, não as imaginárias.

"No tocante", como diria o nosso presidente, ao Estado de Direito, fiquem pacificados. O Artigo 43 do Regimento Interno garante ao presidente do tribunal a abertura, de ofício, do inquérito. Relembro:
"Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro".

"Ah, Reinaldo, mas isso supõe que a agressão a um ministro do Supremo é uma agressão ao tribunal". E NÃO É? Ou algum ministro foi interpelado em avião ou restaurante porque o agressor tinha uma restrição de natureza técnica a algum voto? Não que eu me lembre. Ou os linchadores apontam os artigos da Constituição ou das leis que teriam sido afrontados pelos magistrados, apresentando as suas objeções? Não! A abordagem é sempre a mesma: hostilização de um membro do tribunal por ele ser quem é e por ter dado um voto que não é do agrado do molestador. Ora, tenham paciência!

A propósito, antes que prossiga: procurem algum texto meu de apoio a esse tipo de conduta. Sempre censurei a agressão a pessoas, ainda que acusadas ou condenadas por corrupção, em ambientes públicos. Sempre foi assim. Inclusive durante os embates políticos que resultaram no impeachment.

No caso do Supremo, está em curso uma campanha contra o próprio Tribunal, contra o Poder da República. E que fique claro: se alguém quer escrever um texto defendendo o fechamento do Congresso ou do Supremo, que o faça. Se, pautado por essa estupidez, propõe alguma forma de ação direta ou move uma campanha pública de desmoralização de seus integrantes, incitando pessoas ao "faça você mesmo Justiça", aí já não estamos no terreno da liberdade de expressão — que não é direito absoluto porque nenhum é.

O amor seletivo ao Estado de Direito faz mal ao país e ao juízo dos amantes. Respondam os inconformados: há ou não há, por exemplo, uma indústria de vazamento seletivo de informações de investigações sigilosas? O primeiro que negar o óbvio está mentindo. Quando se dá curso a esse vazamento, o intermediário da prática está ou não está participando, ainda que indiretamente, de uma luta política? Ora… E que se note: isso está fora do escopo da investigação do Supremo. Faço essa lembrança porque o apreço pela ordem legal não pode ser como tico-tico no fubá: ora sim, ora não.

Há certas coisas que são curiosas. Nunca encontrei, nem na imprensa nem fora dela, quem me oferecesse, por exemplo, uma interpretação alternativa para este trecho da Constituição:
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"

Sim, é o Inciso LVII do Artigo 5º da Carta, que é cláusula pétrea — não pode ser mudado nem por emenda constitucional, segundo define o Artigo 60.

Ora vejam! Dos movimentos organizados de opinião aos senhores ministros do Supremo que defendem a execução da pena depois da condenação em segunda instância, ninguém ofereceu interpretação alternativa. Os argumentos erguem um verdadeiro monumento à tergiversação. Fala-se contra a impunidade e a corrupção; em defesa da moralidade do sentimento social; na necessidade de mudar o Brasil… E a Constituição que se dane! Os mais sofisticados dizem que o "trânsito em julgado" se dá depois da segunda instância. Mas como poderia ser assim se há uma terceira? Então "trânsito em julgado" não é.

Nessa hora, deixa-se pra lá o amor ao Estado de Direito, não é mesmo?

Sim, de fato! Há muito essas práticas escancaradamente criminosas, que buscam intimidar um Poder da República, deveriam estar sob investigação. E o Ministério Público Federal tem autonomia para fazê-lo. Mas será que o faria? Todos sabem que a resposta é "não". Ora, considera-se aceitável que um procurador da República, coordenador de uma força tarefa, use as redes sociais para convocar a população a se manifestar contra o tribunal. E antes mesmo que este vote: vale dizer, trata-se de um agente do Estado, pago com dinheiro público, com poderes que são também de polícia, a fazer proselitismo aberto contra os integrantes de um Poder da República para condicionar o seu voto por meio da intimidação. E nem mesmo se tem uma contenção de caráter administrativo.

É claro que me refiro a Deltan Dallagnol, e é claro que ele vai continuar na sua sanha, que agride os fundamentos mais básicos da própria gestão pública. Porque, a ser assim, imaginem se cada servidor da República resolver fazer campanhas convocando a população contra representantes de outros Poderes ou entes do Estado. Isso não existe em democracia nenhuma do mundo; só aqui. E convenham: não estamos vivendo o nosso melhor momento, não é mesmo? Ou estamos?

Façam uma busca simples na Internet. Vejam lá quantas são as campanhas contra o próprio tribunal — a menos que ele vote de acordo com a opinião de quem cuida da difamação industriada. Esse troço é organizado? Tudo indica que sim. Por quem? Com quais propósitos? Atendendo a que interesse. Quem financia? Até porque a rede é grande o bastante para abrigar divergências técnicas, não? Mas elas são técnicas?

Pegue-se o caso do fatiamento ou não dos processos que juntam crimes eleitorais e conexos. O Inciso II do Artigo 35 do Código Eleitoral é de uma clareza solar, a saber:
"Cumpre aos juízes processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais"

Mas, com efeito, o Artigo 109, Inciso I, da Constituição define que aos juízes federais compete processar e julgar:
"as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes…"

Se o artigo parasse aí, os seis que saíram vitoriosos no Supremo estariam violando a Constituição, lei maior, em favor do código, lei menor. Mas o artigo prossegue: "exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho".

As causas sujeitas à Justiça Eleitoral não se enquadram no Artigo 109. E, ora vejam, a própria Constituição dispõe sobre a competência dos juízes no Artigo 121:
"Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais".

O único debate razoável é saber se, para mudar o que se tem, basta um projeto de lei complementar — que requer maioria absoluta para ser aprovado — que mude o Artigo 35 do Código Eleitoral ou se é preciso apresentar uma emenda constitucional que altere o Artigo 109.

Poderíamos estar fazendo um debate qualificado. Em vez disso, de procuradores a milícias na Internet, passando por setores da imprensa, o que se tem é o berreiro organizado: "Querem acabar com a Lava Jato", mantra que se repete há cinco anos. E, se querem acabar com a Lava Jato, o imperativo categórico dos bobos, então qualquer ataque passa a ser razoável.

Que tal a gente debater legislação e regras legais, em vez de fazer o campeonato para saber quem é o mais habilitado para enforcar o último juiz com a tripa do último defensor da ordem legal?

Eu topo o debate.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.