Topo

Reinaldo Azevedo

GOLPE, SIM! 6: Um ato falho e uma contradição inelutáveis na Ordem do Dia

Reinaldo Azevedo

29/03/2019 07h18

Livro de Samuel Huntington que os militares brasileiros deveriam não apenas citar, mas também aplicar. Se o fizessem, não tentariam ser historiadores

Na ânsia de fazer história, a nota incorre num ato falho e numa contradição. Transcrevo o ato falho:
"O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País. As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo."

A ser assim, os que queriam "bolchevizar" o país estariam a serviço do comunismo internacional, certo? Ao escolher o verbo, a questão remete, claro!, à União Soviética, que disputava com os EUA espaço mundo afora em guerras locais. Era essa uma das características da Guerra Fria. Os nossos militares estão admitindo, pela primeira vez sem reservas, que o golpe foi dado atendendo, então, a um dos lados? Teriam servido as nossas Forças Armadas, o que nunca foi admitido oficialmente, a despeito de evidências, de títeres ou gendarmes dos EUA? Deus do Céu! É uma hora especialmente ruim para acordar os mortos, soprando-lhes coisas ruins aos ouvidos. De resto, convenham: os soviéticos, então, treinavam muito mal seus bonecos de mamulengos, né? Deu-se o golpe sem precisar disparar um tiro. A perigosa conspiração comunista não compareceu para a luta…

Agora vem a contradição:
"Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços."

Tinha 17 anos quando veio a Lei da Anistia. Lutei por ela. Comprei briga em anos recentes quando começou a onda para revê-la. "Anistia" tem a mesma raiz da palavra "amnésia". É esquecimento para efeitos políticos e penais. Mas ninguém precisa esquecer a história. E os que foram vítimas do arbítrio têm de ter, sim, direito à reparação, a ser paga pelo Estado legal brasileiro, não pelos militares golpistas. Se houve abusos em indenizações e pensões, que sejam revistos. Mas que não se questione a reparação civil.

E onde está a contradição? Ora, generais, se a anistia foi o "pacto de pacificação", como vocês dizem, a que vem a rememoração que não pacifica, mas acirra ânimos? E o que é pior: fazendo má história.

Quando o general Rego Barros, porta-voz de Bolsonaro — justamente o que falou em "comemoração" — citou, numa "live", o livro "O Soldado e o Estado", de Samuel Huntington, eu tinha ficado satisfeito. Até porque ele exaltou o que autor chama "controle civil objetivo" das Forças Armadas, que supõe a plena profissionalização dos militares, que devem ter absoluta neutralidade política e se dedicar apenas à sua profissão.

O livro é do fim da década de 50. Em 2019, num certo Brasil, sob o pretexto ainda de lembrar o combate ao comunismo, os homens que dispõem das armas e do "monopólio do uso legítimo da violência" (Max Weber) ainda se arvoram em professores de história. Convenham: quem tem tanque não pode querer ter a versão oficial dos fatos. Huntington, um conservador, concordaria comigo ou com a Ordem do Dia, general Rego Barros?

Leiam aqui a íntegra da Ordem do Dia

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.