Há dois Estados de Israel na reação ao “perdão ao Holocausto” de Bolsonaro
Já chamei aqui de "espúria" a aliança entre a extrema-direita judaica e os neopentecostais que tem como emblema Jerusalém. Entenda-se por "espúria" o que está no dicionário: "não genuína", ilegítima". O primeiro grupo quer o apoio de governos para a sua política expansionista, que nega, na prática, a possibilidade de um Estado palestino; o segundo faz política a partir de uma crença — pouco importa se verdadeira ou apenas industriada — de que a segunda vinda do Cristo só acontecerá quando "A Cidade" estiver sob o inteiro controle do "povo de Israel". Por que espúria? Ora, a hipotética segunda vinda de Cristo corresponderia, na prática, à falência do judaísmo como religião. Por que alguém se associa a quem, se estiver certo, vai decretar o seu fim?
Então ficamos assim: um grupo quer suporte político para pretensões que são deste mundo, não? Jerusalém é deste mundo; os assentamentos na Cisjordânia são deste mundo; as Colinas de Golã são deste mundo; a Faixa de Gaza é deste mundo. O outro grupo, a exemplo de toda escatologia religiosa, posterga para o "sem-dia-definido" o "Grande Dia". Se e quando Israel se apossar inteiramente de Jerusalém e de lá expulsar os palestinos, algum teólogo das próprias vertigens escatológicas lançará uma nova condição para a segunda vinda do Messias, que será então adiada. Como se sustenta que Ele virá um dia, o importante é que a seita cresça. Para o outro grupo, o importante é que os assentamentos cresçam.
A aliança entre a extrema-direita judaica e os neopentecostais se deu nos EUA e se repete no Brasil na figura de Jair Bolsonaro. Lá e cá, judeus abrem mão de apoios históricos à sua causa em nome de uma pauta política que nega fundamentos da própria criação do Estado de Israel. Como bem observou Demétrio Magnoli, em coluna na Folha, os postulados que hoje orientam a política empreendida por Benjamin Netanyahu respondem a uma espécie de refundação daquele Estado.
A antes "única democracia do Oriente Médio" está em processo de transformação. E os fundamentos morais que serviram à resistência e ao direito à autodefesa não servem para explicar a ocupação. E, por isso, os judeus que se alinham com o atual governo de Israel e com essa perspectiva renunciam a apoios históricos em nome dos novos aliados. Há riscos. Quando se abre mão do fundamento em nome do contingente, fica-se sujeito a mudanças de contingência. Os judeus não resistiram ao cúmulo do horror cedendo à pauta de oportunistas. Como já escrevi aqui, não me atrevo a ensinar um judeu a ser judeu. Apenas cumpro o meu papel ao lembrar que existe história.
Judeus mais amplamente e israelenses mais especificamente têm o direito, a exemplo de quaisquer outros grupos étnicos ou religiosos, de escolher seus parceiros de caminhada, com seus respectivos valores. Toda escolha feita no presente traz sempre uma imaginação sobre o porvir; traduz, em suma, em que mundo se pretende viver. Por que essa longa introdução?
PERDOAR O HOLOCAUSTO
A aliança espúria entre a extrema-direita judaica e essas correntes evangélicas, que se manifesta no Brasil na figura de Bolsonaro, produziu um primeiro curto-circuito situado entre a moral e a história na fala do presidente brasileiro — que, vamos convir, não é muito versado também nesse assunto e serve apenas de garoto-propaganda dos dois grupos que celebram sua aliança oportunista.
Num encontro com evangélicos na quinta, frustrados porque o presidente não anunciou a mudança da embaixada, Bolsonaro produziu o seguinte colar de pérolas:
"Fui, mais uma vez, ao Museu do Holocausto. Nós podemos perdoar, mas não podemos esquecer. E é minha essa frase: 'Quem esquece seu passado está condenado a não ter futuro'. Se não queremos repetir a história que não foi boa, vamos evitar com ações e atos para que ela não se repita daquela forma".
Bem, em primeiro lugar, a frase que Bolsonaro diz ser sua é um clichê universal cuja autoria se perdeu. Até porque o conceito se repete com as palavras mais variadas. A mais frequente: "Quem esquece (ou não se lembra de) o passado está condenado a repeti-lo". Atribui-se mais frequentemente a George Santayana. Já foi empregada por gente que presta e que não presta. Era, por exemplo, a divisa que servia como uma espécie de portal à comunidade de "Jonestown", na Guiana, fundada pelo sociopata religioso Jim Jones. Numa espécie de ato sacrifical, quase 300 pessoas morreram, em 1978, depois de ingerir veneno. Fanatismo mata. Adiante.
Em segundo lugar, quando se fala em "perdão" ao tratar do Holocausto, é preciso cuidado. A questão remete, em dimensão absurdamente reduzida, ao debate que se fez no Brasil quando as esquerdas tentaram rever a Lei da Anistia, de 1979. "Anistia" — que quer dizer "esquecimento", mas apenas para efeitos penais — não implicava apagamento da história. E tampouco se deve confundi-la com perdão. Se é possível, num ato de superioridade do espírito, perdoar o mal que alguém lhe fez — e aí está um dos pilares do cristianismo —, inexiste perdão para uma ideologia, um pensamento ou um conjunto de valores que pugna pelo mal essencial, que consiste na eliminação do "outro" porque outro; no extermínio de um etnia, de uma cultura, de um povo; na redução daqueles que não somos nós à condição de coisa. Não há perdão.
REAÇÕES
Em reação a Bolsonaro, o Museu do Holocausto (Yad Vashem) divulgou neste sábado um comunicado em que diz: "Não é direito de nenhuma pessoa determinar se crimes hediondos do Holocausto podem ser perdoados". E acrescenta: "Desde a sua criação, o Yad Vashem tem trabalhado para manter a lembrança do Holocausto viva e relevante para o povo judeu e a toda humanidade". Também se manifestou numa rede social o presidente de Israel, Reuven Rivlin: "Nós sempre iremos nos opor a aqueles que negam a verdade ou aos que desejam expurgar nossa memória — nem indivíduos ou grupos, nem líderes de partidos ou premiês. Nós nunca vamos perdoar nem esquecer." Rivlin afirmou ainda que "líderes políticos são responsáveis por definir o futuro".
Essas vozes ecoam a pátria de Israel de Ben Gurion (imagem no alto), não a de Netanyahu. Uma fala que na boca de qualquer outro líder ou político mereceria o repúdio também da representação daquele país no Brasil teve a acolhida do embaixador israelense, Yossi Shelley, que foi ao Facebook em socorro de Bolsonaro:
"Em nenhum momento de sua fala o presidente mostrou desrespeito ou indiferença pelo sofrimento judeu. Não vingarão aqueles que desejam levantar suspeições sobre as palavras de um grande amigo do povo e governo de Israel."
De quem fala Shelley quando se refere "àqueles que não vingarão"? Só pode ser ao Museu do Holocausto e ao presidente Yad Vashem.
TAMBÉM SOU JUDEU
Reitero: a história me interessa, bem como a separação entre o que é essencial e o que é meramente contingente. Não ensino judeu a ser judeu, árabe a ser árabe, budista a ser budista, palmeirense a ser palmeirense… Escolham a categoria. Nem mesmo me atrevo a dizer como devem se comportar os integrantes de grupos aos quais eu pertenceria porque a condição humana é vasta o bastante para que eu me atenha à minha singularidade, sem que pretenda que esta se manifeste com a força de um exemplo.
Entendo que não se deve sacrificar o essencial no altar do contingente. Porque as contingências mudam, e é o essencial que nos lembra quem somos e de onde viemos. Proceder de modo diferente corresponde a conspurcar a memória e a história em favor de alianças "espúrias", no sentido que o dicionário confere à palavra. Serve apenas a políticos que passam, não a causas cuja permanência serve de antídoto ao horror. E, nesse particularíssimo sentido, também sou judeu.