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Reinaldo Azevedo

Mourão no “Le Monde” e a questão: a ditadura matou pouco? Não! Matou menos

Reinaldo Azevedo

26/04/2019 00h09

Está em todo canto: o vice-presidente da República, Hamilton Mourão (foto), diz em entrevista ao jornal francês "Le Monde" que, "no final, o regime militar brasileiro matou muito poucas pessoas". Não tenho interesse nenhum em tornar Mourão melhor do que ele é. Aliás, hoje em dia, isso seria visto como um esforço para tornar Bolsonaro pior do que é, tarefa que considero com margem estreita de manobra. Mas creio firmemente, e espero não estar enganado, que o general fazia um juízo comparativo, não absoluto. E, sim, faz toda a diferença porque eu mesmo já apanhei muito das esquerdas sob o pretexto de ter feito uma afirmação que nunca fiz.

Se alguém diz que a ditadura (ou regime miliar, como querem alguns) matou pouco, sugerindo que deveria ter matado mais, estamos diante de uma estupidez, de uma boçalidade, de um obscurantismo. Com efeito, o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, já fez isso. Segundo disse, e desconheço se houve retratação, "o grande erro foi torturar e não matar". O vídeo está neste post. Em tempo: "ditadura", sim, não "regime militar". Por quê? Porque a segunda opção faria supor a existência de um governo que, em sendo militar, não fosse uma ditadura. Onde estava a escolha? E para operar com o rigor necessário: o direito de escolher — vale dizer: o voto — é condição necessária da democracia, mas ainda não suficiente. Esta também se assenta em valores que nem sempre são compartilhados pela maioria.

Vamos voltar. A ditadura militar matou pouco? Não! O certo é dizer que ela matou menos. Menos do que quem? Eis o busílis.

Tomarei a população dos países pelos números de hoje porque a conta ponderada implicaria um trabalho de dias para chegar ao mesmo lugar. O Brasil tem 207 milhões de habitantes. Segundo as contas mais severas, sem nenhum interesse de maquiar a história em favor da ditadura, são 434 as pessoas mortas no período. São números oficiais da Comissão da Verdade. Há nesse total gente que morreu, com efeito, de arma na mão. Há os que não tinham vínculo nenhum com a luta política e os que se opunham pacificamente à ditadura. E, por óbvio, há guerrilheiros e terroristas que foram assassinados depois de rendidos. Como aquele era o governo legal, ainda que ditatorial, tratou-se de crimes de Estado. E a reparação era necessária. Se as indenizações, em alguns casos, viraram "Bolsa Esquerdista Aposentado", a distorção não elimina a justeza da reparação — quando justa.

Ditas essas coisas, vamos ver. Quando Augusto Pinochet foi levado pelo capeta, no dia 10 de dezembro de 2006, escrevi sobre ditaduras na América Latina e mortes. E considerei então que o regime de exceção na Argentina, por exemplo, foi obra de uma gangue de delinquentes, assassinos e ladrões. O do Brasil tinha um caráter também civil-tecnocrático — semelhante à do Chile nesse particular. Mas o regime chileno era unipessoal, centrado na figura de Pinochet. O nosso teve a sucessão dos generais e até pode ter enriquecido alguns espertalhões, mas os titulares do poder não eram cleptocratas. O Brasil entrou na ditadura como um país rural e periférico e saiu dele, em crise certamente, mas como uma das dez maiores economias do mundo. O fato perdoa ou justifica mortes e torturas? Não. Mas as diferenças fazem diferença até para entender o que está em curso. Na Argentina, que tem pouco mais de um quinto da população brasileira, são 30 mil os mortos e desaparecidos. No Chile, com o correspondente a 8,6%, as vítimas chegaram a três mil. Por lá, seguiram a máxima bolsonariana ou quase: torturavam e matavam em proporções industriais.

A ditadura brasileira matou pouco?  Convém mudar os termos: matou brutalmente menos do que suas congêneres latino-americanas. Não haveria padrão de comparação possível, tampouco, com a pequena Cuba comunista dos irmãos Castro. Só os executados pela revolução somaram 17 mil. As esquerdas armadas no Brasil, que angelicais não eram, mataram 119 pessoas. Muito? Pouco? Convém sair dessa prisão adverbial ao passado. Sejamos, sim, rigorosos com a história. Mas repudiemos vivamente os que pretendem voltar ao passado para jogar no lixo os valores da democracia liberal, a única que tem condições de conciliar a luta por justiça com o respeito aos direitos individuais e às liberdades públicas.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.