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Reinaldo Azevedo

O Congresso e o STF em face do Don Giovanni da autocracia e seu Leporello

Reinaldo Azevedo

26/05/2019 23h23

Gavan Ring, no papel de Don Giovanni, e David Stout, no de Leporello. O sedutor picareta e seu serviçal de artimanhas

No fim das contas, o resultado dos protestos a favor de Bolsonaro pode ser definido assim: nem grandes o bastante para assustar nem pequenos o bastante para ser ignorados. A primeira constatação é ruim para o governo. A segunda também. Por que afirmo isso?

Alguém vai deixar de votar assim ou assado — ou vai votar assim ou assado — por causa das ruas? A resposta é "não". Mas dá para fazer de conta que não houve alguns milhares por aí que, sob o estímulo e com o apoio do presidente da República, resolveram demonizar o Congresso, o Supremo e a imprensa?

E se viu adicionalmente que parte considerável dos manifestantes tem, como é óbvio, em Bolsonaro seu "duce". Mas há divindades menores: o que vem em segundo lugar, mas muito próximo, para desaire íntimo do próprio presidente, é Sérgio Moro. O ex-juiz se tornou caudatário inequívoco da pauta fascistoide que foi levada às ruas. Vamos parar de dourar a pílula! O que menos se fez nas manifestações foi defender a reforma da Previdência. Até porque, fosse esse o mote real dos protestos, seria preciso, então, bater em Moro e nos procuradores da Lava Jato, que nunca fizeram a defesa clara da mudança. Ao contrário! As entidades de classe a que eles pertencem são contrárias ao texto. E os valentes nunca resolveram enfrentá-las. Verdade ou mentira?

Mas, é fato, também havia (e não "haviam", viu, Moro?) os que defendiam a reforma: e aí se viu aqui e ali a exaltação de Paulo Guedes. Apesar de toda a exposição, ele ainda pode andar de metrô e ser tomado por qualquer do povo. Ou por outra: o apoio ao ministro da Economia era só a pauta de exceção nas ruas, tomadas por pessoas dispostas a apoiar o Don Giovanni da autocracia e seu Leporello até havia outro dia improvável… Tratado como herói sem mácula por parte considerável da imprensa ainda agora, que resiste bravamente em perceber que caiu vítima do autoengano, Moro, como já vimos, foi ao Twitter para expressar a gratidão pela manifestação explícita do que, a existir um marxismo cultural, é, então, "fascismo cultural".

Minha perspectiva segue a mesma, meus caros. Acho que a parte do Congresso que pensa e pondera tem de levar adiante a pauta que avalia como positiva para o país — e estou, como sabem, entre os que consideram a reforma necessária —, repudiando os óbvios arreganhos autoritários de Bolsonaro e, sim!, de Sérgio Moro.

Li, por exemplo, que Rodrigo Maia (DEM-RJ), um dos alvos da patuscada deste domingo, pensa em, vamos dizer, dar uma higienizada no decreto pornográfico sobre a porte de armas. O texto tem de ser derrubado em razão de sua inconstitucionalidade essencial e de suas ilegalidades flagrantes, com as quais o ex-juiz anuiu de forma vergonhosa. O dito "pacote anticrime" do ministro da Justiça tem ser submetido a um filtro civilizatório, para tirar de lá, entre outras coisas, a licença para matar. É preciso que fique claro que o presidente que estimulou e deu apoio aos "protestos a favor" deste domingo quer governar por decreto. E quem governa por decreto é gente que odeia a democracia e quer destruí-la.

Sim, há um número considerável de pessoas que pensa porcarias assim. E nós as vimos. Mas existem em número bem menor do que seria, vamos dizer, eloquente para intimidar o Congresso ou o Supremo. Notem que emprego a palavra "eloquente", não "suficiente". É que sou um liberal-democrata ortodoxo. E, numa democracia, nem mesmo uma maioria ocasional do povo pode intimidar os Poderes Constituídos.

As manifestações deste domingo, pois, devem, sim, servir de advertência ao Supremo e ao Congresso: os apetites bonapartistas do Don Giovanni da autocracia e de seu Leporello têm de ser levados em conta. E têm de ser combatidos e tolhidos. E, a depender da agressão à ordem legal e democrática, punidos.

Bolsonaro tem de compreender — e cumpre que Congresso e Supremo deixem isso muito claro — que ele foi eleito, recebeu uma faixa e um diploma e assinou um ato de posse para se subordinar à Constituição e ser seu servidor, não para se servir de suas licenças, ainda que pudesse alegar boas intenções.

Assim, que Congresso e Supremo olhem, sim, para o recado que foi dado nas ruas neste domingo, dia 26 de maio. O recado é este: a semente da desordem existe e precisa de solo fértil para germinar. E o que fertilizaria tal solo seriam a covardia e a desídia dos outros dois Poderes. Se estes exercerem as prerrogativas que lhes confere a Constituição, o Don Giovanni da autocracia e seu Leporello encontram seu destino na comédia.

Simples assim.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.