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Reinaldo Azevedo

Falsos liberais brasileiros odeiam Burke e gostam mesmo é de guilhotina

Reinaldo Azevedo

16/08/2019 07h43

Guilhotina e Edmund Burke. Adivinhem qual é a escolha dos nossos falsos liberais… O Partido Novo não distinguiria o pai do pensamento liberal-conservador de uma torrada com caviar

O irlandês Edmund Burke, considerado a grande referência do pensamento conservador moderno, é autor de uma frase que ilustra à perfeição os descaminhos da Lava Jato, embora os maiores admiradores da operação no Brasil, muito especialmente de seus erros, sejam, olhem que coisa estúpida!, justamente os que dizem se identificar com o conservadorismo e com o pensamento de direita.

Afirmou ele: "Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso". É claro que parece óbvio. Mas estamos falando de um pensador do século XVIII, que fez uma das mais devastadoras críticas que se conhecem da Revolução Francesa. E que se note: ele a fez à luz dos acontecimentos, enquanto se davam. Não precisou de distanciamento nenhum para apontar os eventos desastrosos.

Nascido em 1729, morreu em 1797, três anos depois do fim do banho de sangue promovido pelos jacobinos na França no período chamado de "O Terror", entre agosto de 1792 e julho de 1794, com o morticínio chegando ao paroxismo a partir de setembro de 1793.

No período, pelo menos 500 mil pessoas foram presas. Com milhares de guilhotinados e fuzilados. Afinal, os revolucionários tinham, como dizer?, sede de justiça e de verdade, não é mesmo? Burke não se deixou enganar pelos proclamados bons propósitos.

Não que a monarquia fosse coisa que prestasse. Não que as iniquidades não estivessem aos olhos de todos. Não que a tríade que virou clichê — Liberdade, Fraternidade, Igualdade — seja, por si, um mal. A questão, como sempre, está nos meios. Os propósitos a que se lançam os que anseiam mudar o mundo — e, sim, é preciso mudá-lo — são quase sempre nobres e superiores. Os meios é que vão qualificá-los.

Ou por outra: aquilo que Maquiavel nunca defendeu — os fins justificam os meios — é só uma divisa totalitária de quem não se dispõe a refletir sobre tais meios, que qualificam os fins.

Vejo as críticas que se fazem ao projeto que muda a lei que pune abuso de autoridade, aprovado pelo Senado e pela Câmara, e confesso sentir até certo constrangimento. As opiniões, baseadas no nada, escorrem a céu aberto, como um esgoto moral.

Isso prova, sim, que o espírito nefasto da Lava Jato — não o bom propósito: combater a corrupção — ainda tem força e seduz as consciências. Infelizmente, o que vejo fazer representantes de associações de juízes, de policiais federais e de procuradores é a defesa escancarada da impunidade para agentes de Estado.

As hostes do morismo e do bolsonarismo nas redes sociais estão inflamadas. Parte considerável desses grupos incita o presidente Jair Bolsonaro a vetar trechos do texto aprovado, quando não ele todo, na certeza de que uma grande conspiração de corruptos está por trás de uma legislação que, Santo Deus!, protege os indivíduos do poder ilimitado do Estado de vigiar ou punir. O que o texto faz é lembrar que também os agentes do Estado, encarregados de aplicar a lei, devem fazê-lo… dentro da lei.

Nos bastidores, este inacreditável Sergio Moro, ministro da Justiça de Bolsonaro, que se arrasta na incompetência e na indigência política, alimenta a reação contra o texto. O inefável Partido Novo, que se diz liberal — não deve distinguir Edmund Burke de torrada com caviar —, resolveu judicializar o caso e recorrer ao Supremo contra a votação simbólica havida na Câmara, que aprovou o texto.

Não tenho ideia do que fará Bolsonaro. Um de seus filhos, Eduardo Bolsonaro — aquele que quer ser o embaixador do Brasil nos EUA — andou atacando trechos do projeto nas redes sociais, em particular a punição a agentes policiais que recorrerem desnecessariamente a algemas. A tese: isso deixaria de mãos atadas os policiais, não os bandidos.

É mentira. O texto só dá a dimensão de lei à Súmula Vinculantes nº 11 do Supremo. Mas sabem como é… O governo que aí está se ancora e se escora, em boa medida, nas hostes do ódio que ele próprio alimenta nas redes sociais.

E, de modo não menos vergonhoso, procuradores e juízes omitem dos incautos que a persecução penal aos que abusarem do poder só se dará com o concurso do próprio Ministério Público, titular da ação penal, e da Justiça, que julgará os eventuais réus.

Por que chegamos a essa lama moral? Porque Burke, para não variar, estava certo quando afirmou que "quanto maior o poder, maior o abuso". Deram à Lava Jato o maior e mais deletério de todos os poderes: agir acima da lei. E, ao poderoso que está acima da lei, tudo é permitido.

Que o Congresso compre essa briga. É agora ou nunca. Se Bolsonaro vetar o texto, que o veto seja derrubado. A gritaria contra o projeto ainda é eco do poder absoluto que foi conferido aos Robespierres de meia-tigela de Curitiba.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.