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Reinaldo Azevedo

Raquel sai, Aras está chegando. É uma boa hora para lembrar a missão do MPF

Reinaldo Azevedo

13/09/2019 08h27

Raquel Dodge, a procuradora-geral que saiu, e Rodrigo Aras, o que vai entrar. MP tem de se reencontrar com o estado de direito (Fotos: Secom PGE/Roberto Jayme – TSE)

Raquel Dodge participou, nesta quinta, de sua última sessão no Supremo como procuradora-geral da República. O tribunal lhe prestou uma homenagem, muito especialmente na fala do decano, Celso de Mello, e do presidente da Casa, Dias Toffoli. Raquel também falou. Sempre acontece um evento assim quando o procurador-geral está se despedindo. Desta feita, no entanto, a fala tem um sentido especial. Recados foram enviados, sim, ao presidente Jair Bolsonaro e à sua base de radicais. Cumpre não esquecer que, há dois dias, Carlos Bolsonaro, o filho mais próximo do pai, fez a apologia indireta da ditadura. Mas o Palácio do Planalto não foi o único endereço dos recados. Eles também foram enviados à Lava Jato.

Cumpre destacar, de saída, um trecho da fala de Mello, cuja íntegra está aqui:
"A Constituição da República atribuiu ao Ministério Público posição de inquestionável eminência político-jurídica e deferiu-lhe os meios necessários à plena realização de suas elevadas finalidades institucionais, notadamente porque o Ministério Público, que é o guardião independente da integridade da Constituição e das leis, não serve a governos, ou a pessoas, ou a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República, nem deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja ou o instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, quaisquer que estas sejam, sob pena de o Ministério Público mostrar-se infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é a de defender a plenitude do regime democrático".

Como se nota, na fala de Mello, não cabe um presidente da República que eventualmente tenha a pretensão de manietar o Ministério Público ou a intenção de restringir a sua pauta apenas a seus interesses políticos. Afinal, o MP "não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja". A lembrança vem bem a calhar num momento em que o governo federal faz questão de manter uma relação tensa com minorias e com o meio ambiente.

Mas estes também são os dias em que The Intercept Brasil expôs as entranhas da Lava Jato e sua adesão ao terror judicial. Lembra Mello que o órgão não serve a governos, mas também não pode servir a grupos ideológicos ou a partidos políticos.

Em sua fala de despedida das funções de procuradora-geral, Raquel chamou a atenção para os discursos em voga que atacam a própria ordem democrática. Afirmou:
"Faço um alerta para que fiquem atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal, vez que no Brasil e no mundo surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para as futuras gerações. Neste cenário, é grave a responsabilidade do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal, seja para acionar o sistema de freios e contrapesos, seja para manter leis válidas perante a Constituição, seja para proteger o direito e a segurança de todos, seja para defender minorias".

O país passa, sim, por um momento delicado, e tais falas são bem-vindas. O sistema de garantias e liberdades públicas sofre distintas e combinadas pressões em sentido contrário. Sobram evidências de que a Lava Jato, por exemplo, constituiu um estado paralelo, de caráter policial, sob o pretexto de combater a corrupção. Direitos fundamentais de simples investigados, de acusados, de condenados e até deus familiares foram flagrantemente agredidos em nome da causa.

Ao mesmo tempo, é preciso que fique claro que o desmanche da arquitetura de ilegalidades não supõe um Ministério Público omisso, que condescenda com a agressão à ordem legal ou que se comporte como mero despachante das vontades do Executivo. Raquel será substituída por Augusto Aras, que ainda tem se de submeter à sabatina e à aprovação do Senado.

A um parlamentar, Aras afirmou ter dito o seguinte a Bolsonaro:
"O Ministério Público e o Procurador-Geral da República têm as garantias constitucionais que o senhor não vai poder mandar, desmandar para emitir a sua liberdade de expressão. Você tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação, mas você não vai poder mudar o que for feito".

Se a conversa se deu mesmo assim, ótimo! Torço para que tenha deixado claro ao presidente da República que, como quer Mello, o Ministério Público não se curva à onipotência do poder. Mas, por óbvio, não pode buscar a onipotência.

Aras já conversou, por exemplo, com a bancada petista no Senado. Defendeu um Ministério Público independente, sem viés "punitivista". Que fique claro: entenda-se por "punitivismo" não o pedido de punição para criminosos, mas um comportamento pautado pelo denuncismo, pela criminalização da política e pela condenação e expiação pública de alvos ao arrepio do devido processo legal.

Coisas sensatas foram ditas à partida de Raquel Dodge e às vésperas da chegada de Aras. Vamos ver como será a prática. A desordem no MPF é grande, notadamente porque aquele que é, nas palavras de Mello, o guardião independente da Constituição se tornou o principal agente do seu esbulho.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.