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Reinaldo Azevedo

Trump deu, sim, olé em Bolsonaro. Resta ao Mito cantar “Cilada", do Molejo

Reinaldo Azevedo

11/10/2019 06h56

O Brasil foi, sim, trapaceado pelos Estados Unidos no imbróglio da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), embora Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, Ernesto Araújo e até Donald Trump tentem dizer o contrário. O problema não está exatamente no endosso que os americanos deram à pré-neoperonista Argentina. Isso estava previsto. O busílis está em outro lugar.

Na carta enviada ao secretário-geral da OCDE, o mexicano Ángel Gurría, em 28 de agosto, Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA, deixou claro que se opõe à ampliação de membros do clube. Entenderam o ponto? Então houve patuscada em março, quando se anunciou o ingresso iminente do Brasil, e agora (ou, se quiserem, em agosto), quando Pompeo disse "não" à ampliação.

E é aí que Bolsonaro ficou como o apaixonado da música "Cilada", do grupo Molejo:

"Quase morri do coração
Quando ela me convidou
Pra conhecer o seu apê
Me amarrei, demorou
Ela me usou o tempo inteiro
Com seu jeitinho sedutor
Eu fiz serviço de pedreiro
De bombeiro, encanador
Inocente, apaixonado
Eu 'tava crente crente
Que ia viver uma história de amor
Que cilada, desilusão
Ela me machucou
Ela abusou do meu coração
Não era amor, ôh, ôh
Não era
Não era amor, era
Cilada
Não era amor, ôh, ôh
Não era
Não era amor, era
Cilada cilada cilada cilada
Cilada cilada cilada cilada
(…)"
Eduardo Bolsonaro, que o presidente quer na embaixada do Brasil em Washington deveria traduzir para seu pai este trecho da carta: "The US continues to prefer enlargement at a measured pace that takes into account the need to press for governance and succession planning". Vale dizer: "Os EUA continuam a preferir a ampliação [do número de membros da OCDE] a um ritmo contido, que leve em conta a necessidade de pressionar por planos de governança e sucessão". Esse "por planos de governança e sucessão" pode gerar algum ruído. Pompeo está dizendo que, a juízo dos EUA, não dá para abrir as portas do clube a sucessivos membros, sem planejamento. E ele não flerta com prazos. Nem menciona o Brasil.

Ao escrever o que escreveu, estava dizendo "não" ao Brasil e a outros países que se candidataram a uma vaga. Segundo o plano de Gurría, informa o "Valor", a Argentina entraria imediatamente (e vai); a Romênia, em dezembro, o que se confirma; o Brasil, em maio do ano que vem; o Peru em dezembro do próximo ano, e a Bulgária, em maio de 2021. Só a quebrada, falida e em breve peronista Argentina e a Romênia passaram pela peneira de Pompeo.

Ora, ora… Adivinhem quem, no Brasil, apanhou de Bolsonaro e de seus valentes, incluindo Filipe Martins, o rapaz cujo primeiro emprego é ser assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro? Acertou quem respondeu: a imprensa. Sim, senhores! No plano de Gurría, estaríamos na OCDE antes da metade do ano que vem. Se o Departamento de Estado dos EUA mantiver a sua posição, não há mais prazo.

Trump, claro, também acusou distorção da imprensa. Pompeo disse que a carta não reflete exatamente a posição do governo dos EUA, seja lá o que isso queria dizer, já que a dita-cuja é de sua autoria.

NOTICIÁRIO DE MARÇO
É um pouco constrangedor voltar ao noticiário de março, quando Bolsonaro visitou os EUA. Nos jardins da Casa Branca, Trump anunciou: "Nós vamos apoiar [entrada no Brasil na OCDE]. Vamos ter uma boa relação em diferentes formas. Isso é algo que vamos fazer em honra ao presidente [Bolsonaro] e ao Brasil."

Com aquele seu jeito assertivo de ser, que a muitos encanta — há quem compraria terrenos em Marte fosse ele a vender, como vendeu o déficit zero ainda em 2019 e a arrecadação de R$ 1 trilhão com privatizações —, Paulo Guedes era puro entusiasmo. Ele contou a jornalistas que o representante comercial dos Estados Unidos, Robert Lighthizer, havia estipulado uma condição para o Brasil entrar na OCDE. Teria dito: "Se o Brasil é uma economia madura, uma das maiores, então tem de sair do grupo favorecido da OMC"

E como teria respondido o nosso centroavante do déficit zero e do um trilhão? Ele contou a jornalistas: "Fiz o meu pedido: 'quero entrar na primeira divisão'. Ele falou: 'Então me ajuda a limpar a segunda divisão'".

Bem entendido: a segunda divisão seria constituída, nesse contexto, de países que têm vantagens na OMC — é o caso da China, por exemplo. Em tempo: o Chile pertence ao grupo e não precisou abrir mão de nada. Mas sabem como é… O antes gigante adormecido, dizem os bolsonaristas, agora acordou. Em comunicado conjunto, os dois países anunciaram então: "Seguindo seu status de líder global, o presidente Bolsonaro concordou em abrir mão do tratamento especial e diferenciado na OMC, em linha com a proposta dos EUA".

É bem verdade que, até agora, não abriu mão de nada. Mas o fato é que havia aceitado uma exigência que não foi feita a outros países. Bolsonaro já fez concessões: aumentou a cota de importação de etanol dos EUA; eliminou a necessidade de visto para a entrada de americanos no Brasil (a recíproca, claro!, não é verdadeira); comprometeu-se a mudar a legislação para permitir que a AT&T compre a Warner também no Brasil; prometeu cerrar fileiras com Trump para depor Nicolás Maduro; aceitou compartilhar a Base de Alcântara com os EUA para o lançamento de foguetes e satélites…

Em troca, até agora, os americanos deixaram Eduardo Bolsonaro participar de uma reunião entre Jair e Donald…

Foi o máximo que conseguimos até agora.

CORREÇÃO
Eu havia me referido à música do grupo Molejo como "Trapaça". O título da canção é "Cilada".

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.