STF: Prender quando? Passado não conta. É 1º exame do tema segundo a Carta
O Supremo retoma nesta quarta a votação das ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) que tratam da prisão depois da condenação em segunda instância. As pessoas, por óbvio, podem ser favoráveis ou contrárias a uma coisa e a outra. Temos o direito de escolher os nossos sonhos. Mas, nesse caso, só há uma maneira de atender ao que está escrito no Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição. E lá está escrito que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Não custa lembrar: ninguém quer dizer "nenhuma pessoa"; culpado quer dizer "o que tem culpa", e trânsito em julgado quer dizer que não há mais recursos. Ora, se a Constituição não reconhece a culpa antes da condenação sem mais recursos, então culpada a pessoa ainda não é aos olhos da Carta. Se não é, como vai ser presa?
GASPARI E A AFIRMAÇÃO ESTRANHA
Em sua coluna na Folha de hoje, Elio Gaspari faz uma estranha afirmação. Escreve:
"Uma banda do debate diz que deve ser assim porque isso é o que diz a Constituição. Não é. Se fosse, o mesmo tribunal não teria decidido duas vezes que o condenado na segunda instância deve ficar preso".
Hein? Então duas decisões do Supremo mudam o que está escrito? "Ninguém" deixou de significar "ninguém"? "Culpado" deixou de significar "culpado"? "Trânsito em julgado" deixou de significar "trânsito em julgado"?
A propósito: se decisão do Supremo muda o que está escrito na carta, por que tal escrita não passaria a ter, então, segundo o argumento de Gaspari, uma nova redação? Se voto vitorioso muda a letra impressa, então se terá, a partir dele, uma nova escrita. Mas não é o caso. O Supremo não tem de inventar nada. Tem de aplicar o que vai na Carta. E ponto!
A propósito: quer dizer que, na votação do mesmo tribunal, em 2009, a Constituição dizia outra coisa? Ora…
VAMOS BOTAR ORDEM NA BAGUNÇA
O Supremo, na verdade, nunca votou a questão sob a ótica do chamado controle de constitucionalidade, o que é feito por intermédio da Ação Direta de Inconstitucionalidade, da Ação Declaratória de Constitucionalidade e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. E o que é "controle de constitucionalidade"? Vamos ver o que ensina o professor Alexandre de Moraes, também ministro do Supremo: "controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais."
Atenção! Nas cinco vezes em que se posicionou sobre o assunto, o Supremo votou habeas corpus, não matéria constitucional. Das cinco, apenas duas votações foram juridicamente relevantes. E uma terceira foi politicamente barulhenta. Explico.
Em 2009, por sete a quatro, o tribunal decidiu conceder o habeas corpus ao impetrante, entendendo, e estava certo, que, na Constituição — atenção, Gaspari! —, está escrito o que está escrito: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Votaram, então, com a Carta os ministros Eros Grau, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Opuseram-se à Lei Maior os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie. Desde essa votação, condenados em segurança instância que não tinham prisão preventiva decretada passaram a aguardar em liberdade o trânsito em julgado.
Entenderam? A partir de 2009, tribunais de segunda instância estaduais e federais não mais autorizavam a decretação da prisão de condenados porque consideravam que o Supremo havia entendido que a execução da pena se dava apenas depois do trânsito em julgado.
Até que, em 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu permitir a aplicação da pena de prisão depois da condenação. Um HC foi parar no Supremo e, então, houve a mudança de entendimento. O tribunal passou a autorizar, mas não a impor, a execução provisória da pena. A maioria foi, então, formada por Teori Zavascki, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Opuseram-se Rosa Weber, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.
Ainda em 2016, dado o novo entendimento, mas sempre julgando habeas corpus, o plenário veio a recusá-lo mais duas vezes.
E aí chegou a vez do rumoroso HC em favor de Lula, em abril de 2018. O ex-presidente foi mantido preso por seis votos a cinco. Foram contra a sua libertação Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Votaram a favor Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello.
UMA NOTA: Tanto o Supremo não tomou uma decisão de mérito a respeito que, depois daquela primeira votação de 2016 e até os dias de hoje, muitos condenados em segunda instância foram soltos por intermédio de HCs concedidos monocraticamente por relatores.
Cumpre lembrar: ao negar o HC a Lula em 2018, a ministra Rosa Weber deixou claro que o fazia em nome da colegialidade porque o entendimento inaugurado pela maioria em 2016 permitia a execução da pena. Mas fez questão de declarar que, do ponto de vista doutrinário, defendia o que está escrito na Constituição.
DESTA VEZ, É MATÉRIA CONSTITUCIONAL
Não caia em papo-furado. O Supremo nunca examinou a questão em ação de controle de constitucionalidade. Ele o faz agora pela primeira vez. De resto, reitero o aspecto algo surrealista da votação. O que se vai declarar é a constitucionalidade ou não do trecho do Artigo 283 do Código de Processo Penal segundo o qual, em caso de condenação, a pessoa só será presa depois do trânsito em julgado — caso, claro!, não haja razão outra para a prisão preventiva.
Como poderia não ser constitucional o que está na própria Constituição, com a diferença de que a Carta, uma norma abstrata, fala em "culpa", e o CPP, a lei, trata da prisão?
Como se deve deduzir, não faria sentido prender se a própria Constituição ainda não reconhece a culpa.