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Reinaldo Azevedo

Homem da Guilhotina a Jato elogia era que matou opositores, camponeses, mulheres e crianças

Reinaldo Azevedo

26/06/2017 03h10

"O Triunfo da Morte", de Pieter Bruegel, o Velho: um procurador da República vê aqui a redenção. Na homepage, ampliação do canto superior direito do quadro.

Devo ter sido o primeiro jornalista a ter associado a Operação Lava Jato ao jacobinismo. E já faz tempo, uns três anos talvez. Claro que tomei muita pancada. Obviamente, eu não o fazia em tom elogioso. Neste sábado, Demétrio Magnoli, meu colega de colunismo na Folha, acusou desmandos na operação, associou-a a uma fase da Revolução Francesa e criticou a conivência — e eu acrescento: a covardia — de ministros do Supremo com procedimentos de exceção.

Obviamente, os críticos dos atos atrabiliários da Lava Jato não se limitam àqueles que são investigados por ela ou são beneficiários da corrupção, assim como não era preciso ser amigo do rei para repudiar a violência dos jacobinos, durante a Revolução Francesa. Se você anda um tanto sem tempo para a leitura e quer entender um pouco do que foi o período, assista ao filme "Danton – O Processo da Revolução" (1982), de Andrzej Wajda.

Essa fase da Revolução, diga-se, evidencia que práticas e pensamentos facinorosos, com alguma frequência, têm sua motivação no discurso da virtude. Se o internauta quiser ir um pouco além e estiver disposto a ser parceiro de um baita livro, de leitura agradável, a dica é "Dicionário Crítico da Revolução Francesa", de François Furet e Mona Ozouf. E você concluirá, então, para citar uma frase célebre de uma das vítimas dos jacobinos (Manon Roland): "Oh liberdade! Quantos crimes se cometem teu nome!".

Pois bem… Carlos Fernando de Souza Lima, o segundo maior propagandista da Lava Jato — só perde para Deltan Dallagnol — e uma de suas vozes extremistas não gostou do artigo de Magnoli e recorreu ao Facebook para escrever esta pérola:
"A voz da verdade que ressoa nos corações corrompidos se parece com os sons que retumbam nos sepulcros sem despertar os mortos. (Georges Jacques Danton – advogado e um dos líderes da Revolução Francesa)

A única motivação que encontro nesse artigo de Demétrio Magnólia [o corretor adulterou o sobrenome de Demétrio] é amedrontar as pessoas com ameaças sobre o caos que virá se não nos contentarmos com o pouco, com as migalhas de mudança que foram conseguidas até agora. Os argumentos de Magnoli têm os mesmos pais daqueles que tentam amedrontar a população com o caos econômico, e são primos daqueles que atemorizam os trabalhadores com supostos prejuízos de uma reforma na legislação trabalhista. Direita e Esquerda nos querem reféns igualmente. Querem que tenhamos medo da liberdade. Querem que acreditemos que somente eles podem nos salvar. Para isso, só querem que cedamos nosso suor e sangue para mantermos a indecorosa festa desses vampiros. Liberdade sempre assusta, mas o destino está nas nossas mãos. Para honrar o espírito da Revolução Francesa, lembramos que apesar do Termidor, os seus ideais prevaleceram e são hoje o coração de todo o mundo político ocidental."

Retomo
Isso não é texto de um procurador da República, mas de um militante político que exalta um período da história que foi marcado por execuções sumárias — isto é, sem o devido processo legal — e que teve como marca a intolerância política. Aliás, o próprio Danton, que ele cita em epígrafe, que se juntou aos jacobinos, acabou sendo condenado à morte durante a chamada fase do Terror, comandada por Robespierre e Saint-Just. Acreditem: esses valentes ficaram apenas 10 meses no poder: entre 5 de setembro de 1793 e 27 de julho de 1794. No período, foram guilhotinadas 40 mil pessoas.

Espalharam-se pela França 50 guilhotinas. Em determinados períodos, operavam seis horas por dia de forma ininterrupta. As execuções eram públicas. As acusações não variavam muito: os condenados eram considerados inimigos do povo. A propósito: notem que o tal Carlos Fernando fala em nome de um "nós", como se fosse um representante popular.

E olhem que, nessa conta, não estão os mortos da "Guerre de Vendée" — ou de Vendéia, região do Vale do Loire. Teve início, de fato, por ali uma reação ao governo revolucionário. Mas o tratamento dispensado aos camponeses revoltosos exibiu uma brutalidade inaudita. Segundo Furet, em seu "Dicionário Crítico", foi decretada em 1º de agosto de 1793 a aniquilação de Vendéia. Nas palavras do historiador: "A ordem era incinerar florestas e casas, derrubar cercas, retirar os animais e transformar a região em um deserto."

E assim se fez. O auge da brutalidade se deu justamente durante o chamado Terror. Em setembro de 1793, 20 mil homens bem treinados do exército republicano partiram para cima de 40 mil camponeses, que lutavam sem método. Foram escorraçados e bateram em retirada. Os sobreviventes ficaram entrincheirados na aldeia de Le Mans: depois de 14 horas de luta, havia 10 mil vendeianos mortos.

Nova investida em janeiro de 1794. Como a resistência já tinha sido aniquilada, conta o historiador Alain Gerard, "Velhos, mulheres e crianças foram trucidados sem julgamento, vilarejos arderam em chamas e nem mesmo os animais foram poupados." Para Furet, só essa jornada matou 100 mil. Ao todo, a campanha contra Vendéia pode ter matado entre 250 mil e 300 mil pessoas.

Agora dá para entender certas coisas. Segundo o procurador, esse banho de sangue deu origem ao que ele chama de "coração de todo o mundo ocidental". Não custa observar: este senhor em nada difere dos que que justificam os 25 milhões a 30 milhões de mortos para a construção do socialismo soviético; os 70 milhões do maoísmo na China; os 3 milhões de executados por Pol Pot no Camboja ou, se quiserem ficar na América Latina, as 100 mil vítimas fatais do regime cubano, entre fuzilados e gente que se afogou tentando fugir daquele paraíso.

O lado messiânico da Lava Jato nunca esteve tão exposto. Cabe, agora, à população decidir, por intermédio dos instrumentos que fornece a democracia, se, sob o pretexto de se combater a corrupção, o país deve ou não mergulhar numa ditadura sem regras, na fase do Terror, tão apreciada por Carlos Fernando, Rodrigo Janot e sua turma.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.