Topo

Reinaldo Azevedo

Candidato avulso e “fundo do Huck” são apostas na bagunça legal e institucional

Reinaldo Azevedo

04/10/2017 16h38

Raquel Dodge, procuradora-geral da República, deu sua primeira piscada para a anarquia quando anuiu com as chamadas candidaturas avulsas. A questão foi pautada, sem mais nem aquela, por esta sempre e nada surpreendente Cármen Lúcia. A coisa chega a ser acintosa. Este é o país em que o Supremo Tribunal Federal avança com unhas e dentes sobre a doação de empresas a campanhas, matéria que deveria ser regulada pelo Legislativo, impondo às legendas organizadas severas restrições. Mais: estão elas reguladas também por um emaranhado de leis e códigos. Aí alguém recorre ao STF, em nome da igualdade garantida pela Constituição, e consegue pautar a corte suprema do país para votar isso que é uma óbvia excrescência. Proíbe-se a doação de empresas, na suposição de que os políticos que se assumem como políticos são bandidos, mas se permite a candidatura do cavaleiro sem mácula, supostamente solitário? Quem o financia? Terá direito a verba do fundo eleitoral, em havendo um?

Sabem o mais impressionante? Vejo defensores da cláusula de barreira, que vai limitar o número de partidos, a defender as tais candidaturas avulsas. Aí não dá! Ou o sujeito está sendo picareta na ida ou na volta, não é? Então vamos criar embaraços às pequenas siglas para dar à luz os indivíduos-partido? Os homens-célula? Abrem-se, ademais, as portas para a candidatura de celebridades, inclusive aquelas fabricadas pelo alarido das redes sociais. A determinação de alguns patriotas de generalizar a desordem é mesmo impressionante.

Agora vem essa história de criação de um "fundo cívico" para financiar candidatos, inciativa liderada por Eduardo Mufarej, sócio da Tarpon Investimentos e presidente da Somos Educação S.A. A face mais conhecida da iniciativa é o apresentador de TV Luciano Huck. Potenciais candidatos receberiam uma espécie de bolsa de estudo, de R$ 5 mil mensais, desde que se comprometessem com uma pauta que inclui responsabilidade social, responsabilidade ambiental, ética etc. Em suma, essas coisas boas, com as quais todos concordamos.

Olhem aqui: eu não teria nada contra uma inciativa dessa natureza não fosse ela uma clara burla aos limites impostos pelo Supremo para o financiamento de campanha. É preciso desprezar solenemente a inteligência alheia para ignorar que estaríamos diante de uma forma de financiamento de campanha por pessoa jurídica — o que é proibido por lei —, embora a inciativa envergue as vestes da ação desinteressada. Até pode ser, no sentido concupiscente da palavra. Em política, inexiste "desinteresse".

Aí alguém diz: "Ah, mas eles financiariam candidatos de vários partidos…" E daí? Na raiz dessa afirmação, está a demonização das legendas. Mundo afora, isso tem-se provado uma má ideia. Esses candidatos, se eleitos, não vão prestar contas a legendas, que estão submetidas a alguns controles, mas certamente terão de, ao menos, fazer valer o apoio que receberam de uma entidade de gestão estritamente privada. Ocorre que as pessoas financiadas por esse fundo vão ocupar funções públicas.

Vejo os respectivos nomes de outras personalidades, além de Huck e Mufarej, que estariam ligadas à iniciativa, como Nizan Guanaes, Abílio Diniz e Armínio Fraga. Tenho sobre todas elas a melhor impressão. Mas um molde que fere a institucionalidade em curso — contra a qual eu me bato, diga-se: eu sempre fui contra a proibição da doação de pessoas jurídicas a campanhas — não pode ser admitido assim, sem mais nem aquela. A natureza benigna de seus proponentes não torna igualmente benigna a transgressão dissimulada da lei.

Durante anos — sim, anos! — eu me bati praticamente sozinho contra a proibição da doação de empresas a campanhas. Isso estava na proposta de reforma política que o PT começou a debater, atenção!, em 2011!!! Havia à minha volta um gritante silêncio a respeito. Quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pela OAB, com redação de Roberto Barroso, então advogado da causa e depois ministro do Supremo (e ele disse "sim" ao próprio texto…) chegou ao STF, adverti justamente para o que está em curso. Quem vai, agora, financiar as campanhas?

Mais: se os empresários de bons propósitos podem ter a sua fundação — ou o que seja — de financiamento de campanha, então os sindicatos também podem, não? Hoje, é verdade, eles já burlam as regras e apoiam candidatos ligadas às suas causas. Mas poderão ser mais explícitos, ou im´licitos, nisso. A Lei Eleitoral proíbe entidades sindicais de financiar candidaturas. Mas me parece fácil achar, então, uma brecha, a exemplo do que pretendem fazer esses beneméritos do setor privado, para participar mais ativamente da disputa. O Brasil viraria um palco para a disputa de corporações de ofício. Seriamos um amontoado de guildas.

Ou bem apostamos na institucionalização de procedimentos ou bem investimos na bagunça. Cláusula de barreira é institucionalização — com candidatura avulsa, é bagunça. Permitir a formação de fundos para apostar em candidatos e partidos pode ser institucionalização; com a proibição da doação de empresas privadas, é bagunça.

De resto, pessoas boas e decentes sempre farão a diferença, é certo. Mas, por si, não garantem um processo benigno se o molde institucional estimular a desordem.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.