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Reinaldo Azevedo

STF e Senado contra a lei; um protetor de crianças vê pornô na Câmara; outro defende a tortura

Reinaldo Azevedo

04/10/2017 06h39

Amigos da criança: João Rodrigues (esq.) viu filme pornô na Câmara; Laerte Bessa defende tortura

O Parlamento brasileiro assistiu ontem a obscurantismos de várias naturezas. E eles se juntaram no cadinho do atraso. Vivemos a síndrome do pega pra capar. Os Poderes da República e parte da imprensa não se distinguem hoje de páginas das redes sociais a juntar aduladores e "haters", os odiadores que babam a sua ignorância convicta. No Senado, vimos o espetáculo patético da sujeição voluntária à pior parte do Supremo. Na Câmara, a defesa — e não era metáfora! — da tortura para enfrentar os "degenerados" da arte. As nuvens da ignorância, da estupidez e da vigarice se adensam.

O Senado botou uma corda no pescoço do Legislativo. Um Poder que, deliberadamente, declina de uma de suas prerrogativas para se submeter ao arbítrio de Outro se desmoraliza. Há até agora quem não tenha entendido que inconstitucional foi a decisão dos três ministros da Primeira Turma do STF que aplicaram a punição a Aécio Neves.

Se o plenário da Casa, do Senado pois, tivesse revogado a punição, teria apenas exercido uma prerrogativa. Ainda voltarei a esse ponto muitas vezes, é certo. Alguns tontos do jornalismo, com a devida vênia, que nem entenderam direito o que está em debate, saudaram tanto a decisão de Edson Fachin, que não concedeu liminar a mandados de segurança impetrados pela defesa do senador e pelo PSDB, como o adiamento, para o dia 17, da sessão destinada a discutir a punição. Vão esperar a votação, no Supremo, da Ação Direita de Inconstitucionalidade que trata do assunto. É claro que foi um erro brutal. Há um claro processo de desinstitucionalização em curso.

A outra Casa do Legislativo, a Câmara, assistia ao cruzamento da bizarrice com a truculência. E o tema ainda era a exposição do MAM, em São Paulo, onde crianças acabaram interagindo, na presença de pais ou responsáveis e de visitantes, com um homem nu, que fazia uma performance. O conjunto dos testemunhos parece bastante convincente ao atestar que nada havia de erótico na cena. Nota à margem: a exposição estava no lugar certo, o MAM. As crianças é que estavam no lugar errado.

Muito bem! Um dos mais exaltados era o deputado João Rodrigues, do PSD-SC. Ele gritava, informa a Folha:
"Um marmanjo completamente nu, de mãos dadas com três ou quatro crianças, fazia uma apresentação cultural. O ato daquele pilantra que estava nu no museu de artes modernas não é só um ataque à moral do povo brasileiro, mas é pra mexer com o subconsciente dos tarados do Brasil. O psicopata, o tarado por criança, quando vê aquela imagem daquele patife, certamente dirá: 'tudo pode'."
E o valentão prosseguiu:
"Não consigo acreditar que tenha algum pilantra, algum vagabundo dentro dessa Casa, que aplauda isso, porque, se tiver, tem que levar porrada. Se tiver tem que ir para o cacete, para aprender. Bando de safado, bando de vagabundo, bando de traidores da moral da família brasileira. Tem que ir pra porrada com esses canalhas."

De "moral da família brasileira" esse sujeito entende. Em 2015, ele foi flagrado na Câmara, durante sessão que debatia a reforma política, vendo filminho de sacanagem no celular. Como é mesmo, Nelson Rodrigues? O puritano é, antes de tudo, um pervertido.

https://www.youtube.com/watch?v=LfWYI7BbvcA

Ah, sim: ele também defende criancinhas fazendo o lobby do armamento. Um patriota!

Mas ainda faltava chegar ao estado da arte da estupidez. Quem deve ter levado histéricos e histéricas ao frenesi, quem sabe libidinoso, foi o deputado Laerte Bessa (PR-DF). Referindo-se ao artista nu, afirmou:
"Pergunta se ele conhece direitos humanos? Direitos humanos é um porrete de pau de guatambu que a gente usou muitos anos em delegacia de polícia. Se ele conhece rabo de tatu [usado para chicotear presos], que também usamos em bons tempos em delegacia de polícia. Se aquele vagabundo fosse fazer aquela exposição (…) ele ia levar uma 'taca' que ele nunca mais ele iria querer ser artista e nunca mais iria tomar banho pelado".

O que é taca, leitor amigo? O Houaiss explica: é uma ripa que se prende ao pulso por uma correia, empregada para castigar os escravos.

Como se nota, o agora deputado confessa ter recorrido à tortura quando delegado de polícia e chama aqueles dias de "bons tempos". Parece estar com saudade de usar porrete, rabo de tatu e taca. Como se nota, um dos defensores de nossas criancinhas gosta de ver filmes pornográficos enquanto representa o povo na Câmara. O outro se confessa um ex-torturador, mas ainda defensor da tortura..

No Supremo, devidamente vestidos, com a toga nos ombros, quatro ministros torturaram a Constituição. Teria sido horror menor se tivessem ficado pelados.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.