Topo

Reinaldo Azevedo

ADPF apresentada por Dodge ao Supremo é fraca do ponto de vista técnico. E daí, né? Alerj 1

Reinaldo Azevedo

22/11/2017 06h38

Raquel Dodge e sua petição ao fundo: texto bem-escrito com argumentos ruins

Raquel Dodge, procuradora-geral da República, resolveu recorrer a uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), com pedido de liminar, para anular a decisão da Assembleia Legislativa do Rio, que decidiu libertar os deputados Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB, presos preventivamente por ordem do TRF2, que já mandou trancafiá-los de novo. O texto é bem escrito, mas se trata de uma peça capenga dos pontos de vista jurídico e lógico.

O relator da ADPF é Edson Fachin. Bem, acho seu voto favas contadas. A menos que ele surpreenda com a aplicação ortodoxa da Lei Maior, coisa de que duvido. Tende a acatar os argumentos da PGR, como sempre faz. Mais: em ADPFs, quem concede ou não a liminar é o pleno do Supremo. Em caso de extrema urgência ou de lesão grave, o relator o faz sozinho. E Fachin adora fazer sozinho, né? Vamos ver. A íntegra da petição está aqui.

Atenção! Em votação de ADPF, cabe, sim, pedido de vista. Acho pouco provável que, ao ser julgada, a questão se esgote de imediato. O tema é tão sério que há a tendência de alguém pedir mais tempo. Falemos um pouco da petição de Raquel.

Pedido impróprio
Começo pelo óbvio. Qualquer estudioso mediano pode dizer que o instrumento é impróprio. Caberia, no caso, isto sim, uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade). A ADPF tem servido para os casos em que heranças legais que sobreviveram à Constituição se mostram incompatíveis com ela. Não se trata disso. Não estou pegando no pé da doutora, não. O que levou a Alerj a tomar a decisão que tomou não é legislação outra, incompatível com a Constituição, mas disposições da própria Carta.

O alvará e o exagero
Em sua petição, Dodge alega que o TRF2 não foi oficiado. E não foi. Logo, a Assembleia Legislativa do Rio não poderia ter determinado a soltura dos deputados, que ela classifica, com exagero evidente, de "manu militari" — vale dizer, com o auxílio de força militar. Menos, doutora! Retórica incendiária só emburrece o debate. Assim, ela aponta o que seria o erro formal. Mas decide enfrentar também o mérito. E, aí, ela comete falhas horrendas para quem se deixa organizar pelo pensamento lógico.

A doutora gasta boa parte de sua retórica tentando demonstrar que a prisão dos deputados foi legal, sim, e que os três estavam em "estado de flagrância". Não estavam, Mas digamos que estivessem: ora, ainda assim, a Alerj tinha competência para reverter a prisão, o que lhe é dado pela combinação dos Artigos 53 (Parágrafo 2º) e 27 (Parágrafo 1º) da Constituição. O primeiro prevê a reversão da prisão para os parlamentares federais ainda que em flagrante, e o outro diz que os estaduais têm as mesmas prerrogativas. Aí a doutora precisou enfrentar essa questão.

O "sim" e o "não" às exceções
Raquel comete uma falha imperdoável para quem examine a sua peça com interesse exclusivo na lei e na lógica. Prestem atenção! Ela contesta vivamente que aquela votação havida no STF sobre medidas cautelares — o chamado "Caso Aécio" — se aplique à esfera estadual. Segundo ela, ali fica claro que a decisão só vale para Senado e Câmara. De fato! Ocorre que o que garante aos deputados estaduais os mesmos direitos é o Artigo 27, que continua valendo na sua inteireza. O ministro Alexandre de Moraes, que redigiu a Emenda do Acórdão, não precisava lembrar que a Constituição ainda vale no país, né?

Mas aí Raquel dá o triplo salto carpado argumentativo: segundo ela, aquela decisão do STF só vale para deputados federais. Mas, ao demonstrar que o próprio tribunal pode desrespeitar o Artigo 53 e impor a parlamentares medidas cautelares não previstas na Constituição, ela apela ao caso Eduardo Cunha, afastado do mandato por decisão do ministro Teori Zavascki, com o apoio dos demais ministros. E ele era um deputado federal! Assim, uma decisão sobre parlamentares federais, diz a doutora, não pode interferir na esfera estadual, a menos, claro!, que tal decisão seja útil à sua tese.

Ela também apela a uma decisão do Supremo sobre prisão de um deputado estadual em Rondônia (HC 89.417-8/RO) para evidenciar que "é perfeitamente possível decretar a prisão preventiva de parlamentar estadual, sem controle político pela respectiva Casa Legislativa, na 'situação de absoluta anomalia institucional jurídica e ética', quando ausente a independência da Assembleia para deliberar com isenção de ânimo e de acordo com a supremacia do interesse público sobre a prisão do dito parlamentar".

Vale dizer: Raquel admite, sim, que a prisão de deputado estadual é vedada pela Constituição; que só pode ocorrer em caso de flagrante de crime inafiançável e que a Assembleia Legislativa pode revertê-la. Mas ela pede ao tribunal que considere dois casos como precedências: o de Eduardo Cunha (que não era prisão) e o de Rondônia: nesse episódio, a prisão foi decidida por um tribunal superior, o STJ. Se vocês lerem a respeito — pesquisem! —, verão tratar-se de coisa muito diversa do Rio. Considerar que Picciani e sua turma mandam até nas decisões do PT e do PSOL parece um pouco de exagero.

Sim, acho que alguém pede vista. Mas a confusão está armada. E sabem por que isso tudo está em curso? Porque, ora vejam, com alguma frequência, no Brasil, alguém tem a ideia de transgredir a lei para fazer Justiça. E provoca ainda mais confusão.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.