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Reinaldo Azevedo

CEF 1 – Procurador investiga um “je ne sais quoi” qualquer no banco. De fato, temos é o MPF tentando agora controlar as estatais

Reinaldo Azevedo

22/01/2018 07h25

Faço aqui um desafio. E sei que o Ministério Público Federal, a bem do Brasil, da verdade e dos fatos, há de aceitá-lo. E notem: não é que meu desafio se assente na premissa de que nenhum crime foi cometido na Caixa Econômica Federal (CEF). Não sei se foi ou não. Eu apenas quero entender o que o procurador Anselmo Lopes está investigando. O Estadão publicou uma entrevista sua neste domingo. Li três vezes. Na primeira leitura, tentei saber de que diabos ele falava. Não consegui definir. Na segunda leitura, acabei concluindo que o doutor Lopes tem a certeza de que algo de errado aconteceu na CEF, mas ele também não sabe o que é. A terceira leitura me deu a certeza de que o procurador tem uma ideia na cabeça e uma fórmula na mão:
A ideia na cabeça: "estatais fazem indicações políticas; onde houver indicação política, há interesses políticos em curso, e isso não é bom";
A fórmula na mão: "é preciso investigar essas relações políticas, partindo-se do princípio de que algo de espúrio se deu, ainda que não se consiga saber o que é. É uma espécie de aplicação da teoria do "ato de ofício indeterminado".

Explico. "Ato de ofício indeterminado" é, por exemplo, aquele Sérgio Moro viu Lula praticar no caso do tríplex de Guarujá. Ele não aponta qual ato do então presidente resultou, afinal, no pagamento da propina, mas está certo de que foi cometido porque… só poderia ter sido cometido. No caso da CEF, por enquanto, nem existe ainda algo correspondente ao tríplex. Por enquanto, nem o procurador sabe o que investiga. Mas uma coisa é certa: ele já conta, como sempre, com o apoio incondicional da imprensa.

Ainda voltarei a este assunto em particular, mas dou uma notinha agora: não são apenas as "fake news" a ameaçar a seriedade e a isenção da imprensa profissional. Também há o engajamento na agenda policialesca do Ministério Público e da Polícia Federal. Ousaria dizer essa constitui uma ameaça maior à verdade, no ambiente da chamada grande imprensa, do que as notícias falsas, contra as quais há filtros bastante eficientes nas redações. Infelizmente, contra o suposto "policialismo do bem", não há filtro nenhum. Repórteres e colunistas têm servido de meros esbirros da sanha punitiva de meia-dúzia de aloprados.

O caso e a lei
Quatro vice-presidentes da CEF foram afastados temporariamente por sugestão do Ministério Público, o que foi endossado pelo Banco Central. Muito bem! Durante o afastamento, a Caixa aprovou um novo estatuto, adaptando-o à chamada Lei das Estatais, a 13.303. O presidente da República não mais nomeará os vice-presidentes do banco, tarefa que passa a ser do conselho, cuja composição também mudará: pelo menos um quarto de seus membros tem de ser independente. Os vices têm de passar pelo crivo do BC. Executivos terão de apresentar currículo compatível com o cargo que ocupam e são demissíveis "ad nutum" demissíveis pelo conselho.

A lei só existe porque Michel Temer, ainda presidente interino, a defendeu e a sancionou em junho de 2016. Dilma, a presidente anterior, era contrária ao texto. Sindicalistas de esquerda recorreram à Justiça contra o texto. Se aplicada — peço que prestem atenção, em especial, ao Artigo 8º —, estatais deixam de ser caixas prestas, ainda que estatais continuem, o que é um mal em si. Infelizmente, no entanto, a cura para ele — privatizações amplas, gerais e irrestritas — não virá tão cedo.

"Sui generis"
Estamos diante de um caso "sui generis, expressão que, em latim, quer dizer, "do seu próprio gênero", vale dizer: nada de semelhante ocorreu antes. Os vice-presidentes foram afastados porque estariam sujeitos a influências políticas. Entre os indícios, há até um e-mail do então vice-presidente, Michel Temer, a um desses vices. Alguma sugestão, remota que seja, de cometimento de crime? Respostas: não!

E agora voltamos ao procurador Lopes. O Estadão lhe deu a chance de dizer que diabos, afinal de contas, ele apura na Caixa nesse caso das influências políticas. Ele também não sabe. Já conduz as investigações das operações Sépsis (que apura irregularidades em aporte do fundo de investimento do FGTS), da Cui Bono? (que investiga corrupção na liberação de empréstimos pela vice-presidência de pessoa jurídica da Caixa) e a Greenfield (cujo foco são desvios nos maiores fundos de pensão do País). Notem: a apuração a que estou me referindo e sobre a qual ele dá entrevista não tem a ver com nenhum desses casos.

Trata-se de alguma outra coisa. Diz ele:
"Ficou muito claro que o esquema geral de indicações políticas para composição do conselho diretor e das vice-presidências proporcionaram um tipo de relacionamento espúrio que não só deu espaço para toda sorte de corrupções ou de atuações irregulares, como também acaba sendo elemento de fragilização do relacionamento com o mercado."

Eu, que defendo a privatização até de escolinha de Jardim da Infância, acho que o estatismo leva à corrupção. Mas, de um procurador, espero que diga, afinal de contas, qual crime está sendo investigado. E ele não diz porque também não sabe. Os que o entrevistam no jornal colaboram com ele com uma pergunta camarada, a saber: "As indicações políticas estão na origem da corrupção encontrada na Caixa?"

E ele responde:
"O funcionamento geral da governança do banco propicia esse tipo de ilicitude. Não é só uma questão de indicação política. É toda uma estrutura de funcionamento e seleção de pessoas que acaba dando asas a esse tipo de coisa."

Mais adiante, Lopes observa:
"A pergunta que deve existir é: qual é o interesse de se indicarem pessoas com comprometimento político para a direção de estatais? É justamente gerar um relacionamento espúrio entre os que estão ali alocados com os agentes patrocinadores políticos e as empresas que acabam tendo acesso diferenciado a essa estatal, dependendo da vinculação política. Isso não só gera risco moral, como um grande risco de desvirtuamento de corrupção no mercado. O Estado deve agir de forma a não gerar desequilíbrio. Não pode ser uma intervenção manipuladora. Quando o Estado se corrompe e corrompe as estatais, ele acaba corrompendo o próprio mercado".

Perceberam? Doutor Lopes, tudo indica, está investigando alguma coisa que é de origem espiritual: tem a ver com um conteúdo ligado à fé e ao mundo imaterial. A prova de que estou certo é que ele próprio alerta para o que chama "risco moral", que é aquele que os líderes religiosos costumam enxergar quando analisam o comportamento das ovelhas infiéis do seu rebanho. Tentando adequar a sua crença à linguagem de mercado, ele ate e ensaia definir um novo tipo penal, que seria o "desvirtuamento de corrupção no mercado", seja lá o que isso signifique.

Poderia, mas não é…
É claro que eu e o procurador Lopes poderíamos estar juntos. Se forço a mão para fazer uma leitura virtuosa do que vai acima, só posso concluir que, onde houver estatal, haverá o risco da interferência política. Logo, a única maneira que existe de não haver essa injunção indevida é privatizando a estatal. Mesmo com a adaptação dos respectivos estatutos das empresas à Lei 13.303, o risco existirá.

Mas não! Não é por aí que caminha doutor Lopes. Na entrevista, ele revela, referindo-se à recomendação feita pelo MPF à Caixa:
"Nossa recomendação em dezembro não era de afastar os quatro vice-presidentes, não 'fulanizamos' a recomendação. Buscamos que houvesse um cronograma público e adequado de substituição dos vice-presidentes por meio de mecanismos profissionais, com a contratação de uma empresa de headhunter (consultoria especializada em contratar executivos). Não adianta afastar e trocar seis por meia dúzia. O ideal é alterar o modo de seleção para que os ilícitos não se repitam."

Para quem não entendeu ainda, eu explico: o MPF, obviamente, não tem nenhum compromisso com a privatização — e, com efeito, não lhe caberia tal militância. Como, aliás, não cabe a militância do órgão contra qualquer privatização. Pesquisem e verão. O doutor Lopes está empenhado agora, e a grande imprensa já está fazendo lobby involuntário em favor de sua tese, em submeter todas as estatais ao controle do Ministério Público Federal. Entenderam? Os bravos procuradores querem açambarcar mais essa área do Estado. Não lhes basta tomar para si, como têm tomado, domínios que são próprio dos Poderes Legislativo e Executivo.

Façam o que fiz: leia a entrevista de Lopes. Depois releiam. Façam-no uma terceira vez. Tentem saber que diabos, afinal de contas, ele está investigando. E vocês não chegarão a lugar nenhum. A única conclusão é esta: atos de ofício indeterminados certamente foram cometidos, o que implica "risco moral" e "risco de desvirtuamento do mercado", pouco importa que diabo isso queira dizer.

Em suma: o MPF resolveu abrir uma nova frente de protagonismo. Agora, os senhores procuradores querem ser a instância última na gestão das empresas estatais. E, por óbvio, mantendo as ditas-cujas. Aliás, nessa perspectiva, quanto mais estatais houver, mais poderoso será o Ministério Público.

E os trouxas, para não variar, aplaudem. Ou trouxas não seriam.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.