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Reinaldo Azevedo

Papelucho de Dodge a Barroso prova que certo estava La Rochefoucauld ao dizer que hipocrisia é homenagem do vício à virtude

Reinaldo Azevedo

27/02/2018 05h20

La Rochefoucauld: esse sabia o que aconteceria numa pátria chamada Banânia já no século XVII

O pensador e moralista francês La Rochefoucauld (1613-1680) é autor de uma frase, frequentemente atribuída a Oscar Wilde, que é de uma verdade a um só tempo solar e soturna. Solar porque inquestionável. Soturna porque um tanto pessimista, desencantada. Vamos lá: "A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude". Como negar? Os viciosos fazem questão de demonstrar, em público, seu apreço pelas práticas virtuosas, não é? Como, com efeito, não vivem de acordo com os costumes e valores dos quais fazem propaganda, tem-se, então, a hipocrisia — vale dizer: a dissimulação, a representação, a falsa aparência.

Por que eu me lembro disso? Em razão de um papelucho enviado por Raquel Dodge, procuradora-geral da República, ao ministro Roberto Barroso. Mal dá para acreditar no que lá vai quando se leva em conta a prática cotidiana de procuradores da República e delgados da PF Brasil afora.

Vamos ver. Em uma entrevista à agência Reuters há alguns dias, Fernando Segovia, delegado-geral da Polícia Federal, afirmou não haver provas contra Michel Temer num dos casos inventados por Rodrigo Janot — aquele segundo o qual o presidente teria beneficiado uma empresa com uma Medida Provisória sobre os portos. Notem: Segovia afirmou não mais do que um dado da realidade. Afinal, provas não há. Tanto é que a Polícia Federal pediu a prorrogação do inquérito por mais 60 dias.

Doutora Raquel enviou tal pedido a Barroso junto com um outro: para que seja expedida uma ordem para que Segovia se abstenha de "qualquer ato de ingerência sobre a persecução penal em curso". Ela inclui aí eventuais manifestações públicas a respeito, sob pena, advertiu de "afastamento do cargo".

E doutora Raquel lembrou:
"Quaisquer manifestações a respeito de apurações em curso contrariam os princípios que norteiam a Administração Pública, em especial o da impessoalidade e da moralidade".

Muito bem! Eu estou com ela.

E todas as declarações dadas, por exemplo, pelos procuradores Deltan Dallagnol e Carlos Fernando sobre investigações em curso, sobre políticos que nem mesmo são ainda investigados, sobre o Congresso Nacional, sobre as eleições, sobre financiamento de campanha, sobre intervenção no Rio, sobre a atuação de ministros do STF, sobre projetos de lei em votação, sobre emendas constitucionais?…

Enfim, escolham um miserável assunto sobre o qual a dupla e alguns outros da turma não se manifestem.

Uma perguntinha à doutora Raquel. Por acaso, os membros do Ministério Público Federal não estão submetidos aos tais "critérios que norteiam a administração pública, em especial o da impessoalidade e da moralidade?"

Quando, depois de operações da Polícia Federal ou do oferecimento de denúncia, delegados e procuradores concedem entrevistas coletivas, em que condenam sumariamente pessoas que nem ainda foram denunciadas, os tais princípios em nome dos quais fala a doutora não estão sendo jogados no lixo?

A procuradora não consegue fazer com que os que a ela se subordinam obedeçam as regras mínimas do próprio MPF e ameaça o delegado-geral da PF com "o afastamento do cargo"? Que medida efetiva ela tomou até agora contra o abuso praticado pelos de sua turma? Sim, o MPF exerce o controle externo da PF. Por acaso, a titular da PGR assistiu ontem à entrevista coletiva da delegada Luciana Matutino, acompanhada do seu chefe, Daniel Justo Madruga, sobre a operação na casa do ex-ministro e ex-governador Jaques Wagner? A doutora achou aquilo normal?

Venha cá, doutora Raquel! Afirmar que não há provas contra alguém — quando não há — fere a moralidade, mas praticar linchamento moral e execução sumária, como fazem delegados e procuradores, obedece aos rigores da lei?

A corrupção é, sim, um mal a ser combatido. Mas a desordem institucional, acreditem, é um mal ainda mais perigoso  porque esta permite que a corrupção, inclusive a de costumes e de valores — além da outra, a tradicional — se torne monopólio de um grupo.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.