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Reinaldo Azevedo

Especialistas debatem e constatam o óbvio: a Constituição é explicita: sem trânsito em julgado, cumprimento de pena frauda Carta

Reinaldo Azevedo

27/03/2018 09h00

Estamos vivendo um período marcado por tintas de surrealismo no Brasil. Fica-se, às vezes, com a impressão de que estamos passando por um tempo de vazio legal, como se uma velha ordem institucional e constitucional tivesse acabado de cair, e uma outra estivesse em construção, ainda indefinida, de sorte que aquele que gritar mais alto, tiver o lobby mais eficiente ou for mais eficaz no uso da força bruta acaba vencendo. Sim, em certo sentido, pode-se dizer que as sociedades estão em permanente construção e que as leis estão sempre, e felizmente, um pé atrás das inovações. Nem poderia ser diferente. Há coisas que vêm para ficar. Outras passam como surgiram, sem que se conheça a sua gênese e morte. O sentido saudavelmente conservador das leis é preservar a segurança de fundo, estrutural, com uma superfície sempre movediça.

Mas, por óbvio, as democracias, e com a nossa não é diferente, preveem os modos da mudança legal. Republicano que é o nosso sistema, cabe ao Legislativo promover a modernização do arcabouço legal, ficando o Judiciário, nesse particular, com as tarefas ligadas à Interpretação e harmonização das leis. Mas juiz não legisla.

Nesta segunda, deu-se um fato curioso. O Instituto FHC e o site Jota, voltado para questões jurídicas, promoveram um seminário com especialistas sobre a execução da pena depois da condenação em segunda instância. A fala que, para mim, é emblemática, segundo registro publicado pela Folha, é a do desembargador Nino Toldo, do Tribunal Regional Federal da Terceira Região, que compreende São Paulo e Mato Grosso do Sul. Prestem atenção:
"Do ponto de vista teórico, não vejo sentido algum em, uma vez que a pessoa tenha sido condenada em primeiro grau e confirmada a condenação em segundo, que ela aguarde o trânsito em julgado. Porque não existe relação lógica entre presunção de inocência e trânsito em julgado do ponto de vista do processo penal. Agora, não posso negar. A Constituição diz claramente lá que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado. Então, se a interpretação for literal, não tem jeito. A Constituição está errada. É um equívoco lógico".

Tendo a concordar com Toldo. A Constituição está errada. Mas cabe a pergunta: é só nisso? Não há lá outros "erros", entendendo por essa palavra prescrições que podem estar em desacordo com a realidade? Então cabe a pergunta: no Brasil e nas demais democracias, qual é o papel de um juiz? Cumprir o que a "constituição diz claramente" ou submetê-la, pela livre vontade do magistrado, a interpretações que vão contra a sua própria letra? Que caminho leva o país para a insegurança jurídica?

Convenham: nem deveríamos estar tendo esse debate. Aliás, ousaria dizer que debate dessa natureza só se trava mesmo em Banânia.

Oscar Vilhena, professor da FGV e colunista da Folha, até tenta flertar com uma leitura alternativa, mas se vê que não consegue. Diz ele:
"A Constituição é razoavelmente clara. Ela diz trânsito em julgado". Mas pondera: "Não existe democracia no mundo em que a execução, ainda que provisória, não se dê pelo menos na segunda instância. Todos os tratados internacionais de direitos humanos trabalham com o duplo grau de jurisdição."

Bem, o "razoavelmente clara" é cortesia do professor aos ministros do Supremo que querem ignorar o que está na Carta. Relembro: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". A questão, como sabe Vilhena, não está apenas no "trânsito em julgado" — que quer dizer esgotamento de recurso —, mas também no "ninguém será considerado culpado". Se culpada a pessoa não é considerada pelo Estado coator, como é que esse mesmo Estado vai impor uma pena? Pena a quem ele próprio não considera culpado? A equação não fecha.

Kenarik Felippe, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi ao ponto:
"É incompreensível por que não colocar a questão geral em pauta. Porque a ministra do Supremo [Cármen Lúcia] se recusa, vai na televisão, dá entrevista como se fosse a única pessoa naquele quadro de 11 a poder fazer uma negativa de um determinado tema, como se isso fosse a salvação da pátria. O Judiciário está plantando tempestades. O que pode se agravar porque o Supremo não está cumprindo sua função. A Constituição de 1988 trouxe promessas e princípios para serem realizados, não era para ficarem lá de enfeite." E ela emenda: "Tem questões que a gente até fica em dúvida. Nesse caso, é muito claro: trânsito em julgado. Pronto, não tem muito mistério."

Bem, dizer o quê? Já afirmei e reitero. Se há disposição clara na Constituição, convenham, é esta. E, com efeito, a gente nem deveria estar debatendo esse assunto. Mas, se estamos, se praticamente a metade da Corte constitucional tem uma leitura alternativa do que está na Constituição, que, então, se vote a questão geral. Quando Cármen joga para a fulanização do debate, ela põe lenha na fogueira dos conflitos de rua.

A verdade é a seguinte: reúna quantos especialistas vocês quiserem, diante de uma plateia racional, que conheça o sentido das palavras. E a conclusão é uma só: a execução provisória da pena, para Lula, para o Sr. Todo Mundo e para o Sr. Ninguém, é inconstitucional.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.