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Reinaldo Azevedo

Esquerda e direita não estão nem aí para a Constituição: só o destino de Lula lhes interessa. Além de seus próprios interesses

Reinaldo Azevedo

02/04/2018 03h38

Não há nada demais no fato de, numa democracia, grupos organizados se juntarem para defender a execução da pena depois da condenação em segunda instância, como querem livres intérpretes da Constituição, ou só depois do trânsito em julgado da sentença, isto é, da condenação em terceira instância, com os recursos esgotados, como quer a Constituição. Na terça, estarão todos nas ruas. Sim, de saída, note-se um dado importante: as palavras fazem sentido. Não há a menor dúvida sobre o que afirma a Carta Magna. E ela define que, aos olhos da lei, só existe culpa quando não se pode mais recorrer.

Há certo prazer mórbido em afirmar que o Brasil é a pátria da impunidade, evocando-se como exemplos a seguir sistemas judiciais de outras democracias, como EUA e países europeus. Digam-me um só regime democrático em que um tribunal ousa interpretar a Constituição contra o que nela está explicitamente escrito. E, no entanto, os que mais vociferam contra a impunidade pedem abertamente que se desrespeite o que vai escrito na chamada Lei Maior.

Mas volto ao ponto das manifestações. Nos limites da lei, sem recorrer à violência, as pessoas podem ir à praça púbica em defesa do que lhes der na telha. Mas atenção! É preciso saber se quem sai às ruas em favor de uma tese ou de outra respeita o tribunal que decide ou se reconhecem como legítimo apenas um resultado que está de acordo com a sua vontade. Os sinais que há por aí não são muito bons. De lado nenhum.

Venham cá: quando foi que as esquerdas se ocuparam do momento da execução da pena? Resposta: nunca! Ao contrário até! Ainda que não polemizassem sobre essa questão em particular, é preciso deixar claro: esse Ministério Público Federal que brinca de uma mistura de Savonarola, Torquemada e Robespirre é uma genuína invenção petista. Foi Lula, diga-se, quem inventou a moda de indicar como procurador-geral da República um nome de uma lista tríplice, saída de votação direta promovida por uma entidade sindical de procuradores: a ANPR. Essa eleição, note-se, já é uma agressão à Constituição.  

Geraldo Brindeiro, que foi procurador-geral da República no governo FHC, comeu o pão que o diabo amassou nas mãos dos "jovens procuradores" sob a esfera de influência do PT, então um partido que se queria de "puros", Mereceu a pecha de "engavetador-geral da República" porque não cedia ao denuncismo doidivanas da geração à qual pertencia Rodrigo Janot. A eleição direta promovida por Lula em 2003 levou ao cargo Cláudio Fontelles e a turma que gosta de ganhar uma batalha primeiro no grito, usando a imprensa como porta-voz e vazadora de suas acusações, de sorte que as pessoas são condenadas antes mesmo de serem formalmente denunciadas.

Comigo, essa gente nunca se criou. Ocorre que o PT jamais imaginou que pudesse um dia estar na mira. Eis aí. A questão só passou a ser importante para as esquerdas, note-se, depois da iminência da prisão de Lula.

E o mesmo se pode dizer sobre grupos identificados com a direita ou que se dizem liberais — embora seu liberalismo seja tão verdadeiro como uma cédula de R$ 171. A questão da execução da pena depois da condenação em segunda ou terceira instância só se tornou urgente por causa do ex-presidente. Obviamente, nenhum dos grupos que protestam está tomando uma posição de princípio. E a verdade vexaminosa é que não estariam indo para as ruas se Lula fosse um cachorro morto eleitoral. Endossaram todas as maluquices do que chamo Partido da Polícia — setores doidivanas do MPF, da PF e do Justiça —, ajudaram a destruir a política e os políticos, colaboraram para que todos fossem jogados no mesmo saco de gatos pardos, e eis que, bem debaixo de seu nariz, surge uma verdade desmoralizante: sem o Impedimento legal, Lula seria eleito presidente para um terceiro mandato.

Assim, no dia 4 de abril, quando o Supremo estiver decidindo o destino do habeas corpus de Lula, duas hipocrisias estarão nas ruas, opostas e complementares: as esquerdas vão fingir ser favoráveis à execução da pena depois da condenação em terceira instância. De verdade, elas só querem evitar a prisão de Lula. A direita e os falsos liberais vão se fazer de defensores da medida já depois da condenação em segunda. De verdade, eles só querem a prisão de Lula. Isso se revela até no mote que serve à convocação, de que tratarei em outro post, já que se trata de plágio de um texto meu: "Ou você vai, ou ele volta".

No fim das contas, uns e outros estão pouco se lixando para a Constituição. Só interessa o que vai acontecer com "ele" — e, por extensão, estão apenas administrando os próprios interesses.

Eis os princípios dos nossos patriotas de um lado e de outro.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.