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Reinaldo Azevedo

Nota da OAB sobre decisão do STF prova que a entidade que já foi comandada por Faoro, o patrono da volta do habeas corpus, está morta

Reinaldo Azevedo

04/05/2018 17h14

Raymundo Faoro: ele comandou a OAB quando isso requeria coragem contra os tanques, não covardia a favor do alarido da hora

Nota divulgada nesta quinta pela OAB, presidida pelo advogado Cláudio Lamachia, me encheu de vergonha alheia. Fico a imaginar o constrangimento dos advogados que se levam a sério.

Na minha coluna na Folha desta sexta, ironizo entrevista que um amigo de Luiz Roberto Barroso concedeu ao site "Jota", associando-a à figura do já lendário jurista Raymundo Faoro, que presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil entre 1977 e 1979, quando a dita ainda era muito dura.

Num Artigo publicado na Folha, o advogado Cézar Britto, então presidente da OAB, resumiu assim um momento marcante da trajetória de Faoro:
Quando o general Geisel perguntou-lhe o que queria de seu governo, foi claro e objetivo: "Quero muito pouco, senhor presidente: apenas a restauração do habeas corpus, a extinção dos atos institucionais e o fim das torturas no DOI-Codi, quanto mais não seja para que V. Excia não entre na história como um ditador sanguinário, mas, sim, como o presidente da abertura, 'lenta, gradual e segura"'.

De cara, conseguiu o restabelecimento do habeas corpus, o que equivalia a pôr fim às torturas. Pleiteou também eleições diretas em todos os níveis, e obteve inicialmente o compromisso de adotá-las para as eleições de governador em 1982, o que de fato ocorreria.

O desfecho fundamental, que criaria as condições para a redemocratização e tudo o que veio com elas -anistia, liberdade de organização partidária, fim da censura e, depois, eleições diretas para presidente-, deu-se no dia 17 de outubro de 1978, com a revogação do AI-5 ."

Faoro como um inspirador de Barroso? Aquele enfrentou os tanques para restaurar o habeas corpus e outras liberdades. Este, de hoje, resolveu cair no colo da galera e se transformou num inimigo de direitos fundamentais assegurados pela Carta. Aquele lutou por uma Constituinte e uma Constituição; este, como se sabe, avilta  o documento que nos rege.

Mas volto à OAB dos nossos dias. Em nota, a entidade elogiou a decisão tomada nesta quinta pelo Supremo. Ainda que se tratasse mesmo de medida de combate á impunidade, o que é mentira, o que há de grave é a afronta ao princípio da separação dos Poderes. Um relator de uma ação penal — no caso, Barroso — recorreu a uma mera questão de ordem para, mais uma vez, ignorar o que está escrito na Carta.

Desde quando uma questão de ordem, que serve a um mero ordenamento de um processo — como o nome diz — pode se prestar a mudar o conteúdo explícito que foi votado pelo constituinte e cravado na Carta Magna, aquelas pelas quais Faoro lutou.

Mas entendo a OAB. Afinal, a entidade é a autora da ação que resultou na proibição da doação de empresas a campanhas — o que vai entregar a disputa ao caixa dois —, embora nada haja na Constituição que nem remotamente sugira tal coisa. O advogado da causa foi ninguém menos do que… Barroso. Foi ele que redigiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a favor da qual votou, diga-se, já no Supremo.

Essa mesma OAB tem silenciado diante de óbvias agressões ao devido processo legal cometidas pela Polícia Federal, por juízes e pelo Ministério Público. Tem-se mostrado incapaz até mesmo de defender prerrogativas de advogados de defesa, que hoje vivem passando por humilhações em tribunais país afora.

A nota da OAB é vergonhosa. Lá se lê:
"A decisão de hoje é um passo concreto contra a impunidade. O foro privilegiado como era até hoje obrigava o principal tribunal do país, que tem como missão se ocupar das grandes questões constitucionais, a se ocupar com causas corriqueiras do dia a dia de alguns privilegiados, congestionando o STF e contribuindo para a morosidade (…)"

As ações penais não chegam a 10% do total das que tramitam no Supremo. De resto, o foro especial de que tratou o tribunal diz respeito a 594 pessoas. São quase 60 mil pessoas no país inteiro a contar com o instrumento.

Mas doutor Lamachia dá a pista. Atenção para esta pérola:
"A OAB tem defendido mudanças drásticas na forma como o foro por prerrogativa de função tem sido usado. Ele deveria existir para proteger as instituições da República e não os ocupantes temporários das funções públicas".

Ah, entendi! Um juiz e um membro do Ministério Público, por exemplo, ocupam funções permanentes e já gozam de garantias excepcionais. Para eles, então haveria foro especial. Já, entende-se, deveríamos cassá-lo até mesmo do presidente da República. Afinal, este exerce um cargo temporário.

A OAB, assim, além de condescender com esbulho constitucional ainda emite um juízo para puxar o saco das corporações.

Esta, é claro, não é a OAB de Raymundo Faoro.

Esta é uma OAB que se acanalhou, que envileceu, que se tornou reles.

Não apenas se mostra incapaz de defender a Constituição como ainda promove o seu esbulho.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.