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Reinaldo Azevedo

O Geisel furioso com as mortes de Herzog e Fiel Filho ganha, obviamente, uma nova leitura; não podia matar as pessoas erradas; só as certas...

Reinaldo Azevedo

11/05/2018 07h57

O corpo de Herzog no DOI-CODI e Manuel Fiel Filho, assassinado menos de três meses depois

Revelado o conteúdo do memorando da CIA, é preciso evocar o que restou para a história da biografia de Ernesto Geisel, o presidente da República que, no dia 25 de outubro de 1975, ficou furioso ao saber que o jornalista Vladimir Herzog tinha sido assassinado nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo. A sigla sinistra tinha a seguinte tradução: "Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna".

Herzog, que era ligado ao Partido Comunista Brasileiro, foi morto no mesmo dia em que compareceu para depor. Apareceu enforcado na cela. Na versão oficial, tratou-se de um suicídio. Não colou. Judeu, não foi enterrado na área reservada aos suicidas. Um culto ecumênico na Catedral da Sé reuniu milhares de pessoas e deixava consignado: o jornalista tinha sido assassinado pela ditadura. Menos de três meses depois, no dia 17 de janeiro de 1976, foi a vez do operário Manuel Fiel Filho ser assassinado no mesmo DOI-CODI e com a mesma versão oficial: suicídio por enforcamento. Era igualmente investigado por suas ligações com o PCB.

Após essa morte é que tem início o esforço de heroicização de Geisel — ainda que um herói meio truculento. Dois dias depois da morte de Fiel Filho, Geisel afastou o general Ednardo D'Ávila Mello, um linha-dura, do comando do II Exército, ao qual era subordinado o DOI-CODI. Este teria sido o primeiro murro na mesa dado por Geisel contra a tortura e os assassinatos extralegais. O documento da CIA que vem a público deixa claro que não era bem assim: o então presidente da República considerava que aquelas mortes não se encaixavam no perfil das pessoas que deveriam ser mortas ao arrepio da lei da própria ditadura: não eram "subversivos perigosos".

Em outubro de 1977, no dia 12, veio o segundo murro: o então presidente exonera o general Sylvio Frota, ministro do Exército. Anticomunista fanático, tornou-se o porta-voz da linha dura e tentou articular sua própria candidatura à Presidência. Opunha-se à tal "abertura lenta, gradual e segura". Ao perceber que seria demitido, Frota convocou os comandantes militares para uma reunião em Brasília. Ficou isolado. Ao exonerá-lo, Geisel teria dito: "Quem manda aqui sou eu".

Não custa lembrar que entre a morte de Herzog e a de Fiel Filho, ocorre a chamada "Chacina da Lapa". Um destacamento do Exército dizimou o Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Na invasão da casa, morreram a tiros Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. No dia anterior, João Batista Franco Drummond tinha sido capturado. Morreu de madrugada… no DOI-CODI. Cinco outros dirigentes foram presos e barbaramente torturados.

Reconheça-se, sim! Geisel emplacou Figueiredo à sua sucessão, e isso não agradava a linha-dura militar. A abertura teve sequência, e o Brasil assistiu a uma das transições mais suaves, apesar de tudo, entre todos os países latino-americanos que puseram fim à ditadura. O regime responderia pela morte de 424 pessoas, segundo o livro "Dos Filhos Deste Solo", escrito pelos esquerdistas Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio. Entre elas, estão os guerrilheiros do Araguaia. Na Argentina, contam-se 30 mil pessoas. No Chile, 3 mil. A ditadura comunista de Cuba responde por 100 mil, entre os fuzilados (17 mil) e os que morreram afogados tentando fugir do "paraíso" dos Irmãos Castro.

E deixo claro: os esquerdistas não eram anjinhos barrocos em busca da democracia, lutando apenas pelo nosso bem. Os grupos armados respondem por 119 mortes no Brasil durante a ditadura. Considerando seu naniquismo, pode-se falar que eram de alta letalidade.

Lembro isso a bem dos fatos. Nada justifica, no entanto, que um presidente da República condescenda com execuções extralegais. E é isso tanto mais chocante quando nos damos conta de que o regime em nome do qual governava não corria risco nenhum. Os militares tinham controle absoluto do país. Matar ao arrepio da lei por quê?

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.