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Reinaldo Azevedo

Os brasileiros e as russas: na democracia, você tem direito de ser babaca, mas deve saber que pode ter de arcar com as consequências

Reinaldo Azevedo

20/06/2018 17h20

É claro que a democracia é feita também para os idiotas, os cretinos, os machistas, os misóginos, os ignorantes, os truculentos, os violentos e, vamos ao limite, os torturadores e os homicidas. Todos eles estão compreendidos no e até protegidos pelo aparato legal. Só que as democracias reservam tratamentos distintos para essas pessoas. Os apenas idiotas, cretinos, machistas misóginos e ignorantes podem ter de se haver com a censura pública a seu pensamento torto. Que é, ora vejam, legítima e há de ser legal no estado democrático de direito. Com alguma frequência, vejo humoristas a reclamar contra o pensamento que dizem ser politicamente correto: "Pô, não posso mais fazer piada com aleijado, preto e bicha?" Vamos lá. Pode. Não me parece que seja crime. Mas há duas considerações:
a: por que alguém acha razoável fazer piadas contra aleijados, pretos e bichas, três condições que, por óbvio, dados os valores correntes e a história, tornam as pessoas mais frágeis? Para mim, revela-se um traço de caráter; é o caráter mau de um mau-caráter;
b: os que incidirem nesses comportamentos também estão sujeitos, ora vejam, à reação dos descontentes, certo? Que igualmente têm o direito de se manifestar.

Ocorre que há alguns pensamentos tortos por aí, segundo os quais, em nome da liberdade de expressão, tudo é possível. Não! Não é. A tirania é que é o regime em que tudo é possível quando se é amigo de quem manda. Na democracia, não! O sujeito quer fazer piadas que expõem quem já é mais vulnerável a preconceitos novos, a agressões novas, a desaires novos e, diante da reação, grita "censura"? Ah, aí não é possível.

E há os comportamentos que são tipos penais. O homicídio, por exemplo. Que está contemplado na democracia, né? Só que esta reserva ao homicida uma punição. Bem como aos violentos e truculentos, desde que exerçam seus dotes para agredir direitos alheios.

Respondo, assim, a uma questão que é título de um texto de Leandro Narloch, na Folha: "Babaquice é crime?" Na legislação brasileira, não! Sempre destacando que a definição do que é e do que não é crime é parte do pacto social. Os crimes não estão no mundo platônico. O que merece a sanção da lei em certos países não merece em outros. Não é crime ser babaca no Brasil. Mas ninguém é obrigado a tolerar um babaca em nome da diversidade: "Ah, esta é a nossa cota de babacas…" Fosse assim, todos teríamos amigos babacas, não é? Eu, por exemplo, não tenho. E espero não ser o amigo "babaca" de ninguém…

Aqueles bobalhões brasileiros que levaram uma russa a repetir a suposta cor de sua genitália, quando ela não tinha noção do que estava falando, cometeram crime? Se no Brasil e contra brasileiros, situações semelhantes podem ser crimes, sim. Se gravo alguém em situação vexaminosa, sem que a pessoa se dê conta disso; se a induzo ao ridículo e filmo a situação, ainda que com o seu conhecimento, e se divulgo o vídeo nas redes sociais, está claramente caracterizada uma situação de injúria ou difamação, a depender do que é dito. Trata-se de crimes contra a honra.

Não conheço as leis russas. Um país em que gays são legalmente proibidos — não se trata de uma censura de costumes, exercida pelas pessoas, que boa pode não ser, mas também lei não é — de trocar carícias porque isso daria mau exemplo às criancinhas, bem, dá para temer o resto da legislação. Em todo caso, é evidente que o comportamento é inconveniente, grosseiro, estúpido, babaca, misógino, machista… Os valentes fizeram aquela porcaria e a filmaram. Filmaram para que fosse tornada pública. Logo, têm de arcar com as consequências do que acha o público de sua obra genial. Se os russos derem importância à coisa e caso se sintam ofendidos, a depender de sua legislação, podem simplesmente mandar os babacas para casa.

À diferença de Narloch, não acho que a reação seja exagerada, não! Acho bom e didático o que está acontecendo. É bom que o babaca saiba que não está agradando, não é? É bom que o babaca arque com o peso de sua escolha. É bom que o babaca descubra que tem de viver num mundo em que há mulheres como agentes do direito, não como passivo ou de seus folguedos ou de seu primitivismo moral. A Latam demitiu um funcionário seu que fez algo parecido — uma pessoa com cargo de confiança. Exagero? Não! Prudência! Como pode lidar com o público quem não respeita o outro?

Com efeito, a esquerda tende a confundir mais frequentemente a opinião com crime; tende, mais frequentemente, a reagir ao peso das palavras; tende, mais frequentemente, a atribuir a minorias organizadas o papel de polícia de comportamento e de ideias. É claro que isso tem de ser combatido. Mas a mentalidade correspondente à direita tende a achar que tudo é sempre mi-mi-mi; que as pessoas são sensíveis demais; que não deveriam reagir indignadas quando pessoas ou grupos são submetidos ao ridículo — desde que se trate de uma piada, de uma brincadeira.

Quem se diverte com a humilhação do outro tem, reitero, um grave defeito de caráter. Prefiro uma sociedade que seja intolerante com a intolerância. Para boa parte dos comportamentos inconvenientes, não é preciso acionar o Estado, o Pai Patrão. As pessoas dão conta de botar o babaca no seu devido lugar. Como estão botando no caso da russa.

Acho correto o tratamento que a democracia está dispensando àqueles babacas.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.