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Reinaldo Azevedo

Bolsonaro a simular arma na UTI do Einstein fere a etimologia e a essência de um hospital. Alguém quer contra-argumentar, sem ofensas?

Reinaldo Azevedo

10/09/2018 15h59

Vejam esta foto.

Foto feita pela campanha de Bolsonaro do leito do Albert Einstein: não tem cabimento

Antes que chegue a ela, uma pequena digressão.

Qualquer pessoa decente, independentemente de suas afinidades eletivas e do entendimento que tenha sobre o passado, o presente e o futuro do Brasil, torce pela plena recuperação do deputado Jair Bolsonaro (PSL), candidato à Presidência da República. Eu, como poucos, sei o que é passar por perrengues de risco, tendo a malta torcendo pelo pior. Já passei duas vezes por isso. Mas fica para outra hora. Quero agora me ater a uma outra questão.

A foto acima foi feita no leito do Hospital Albert Einstein, um dos mais importantes do mundo. Eu o conheço bem. Foi lá que fiz a cirurgia de crânio em 2006. Meus médicos, também meus amigos, são quase todos ligados à instituição. Não há certamente recurso de que disponha a medicina fora do alcance do deputado. Como se noticiou na imprensa, houve uma espécie de concorrência pública entre duas instituições privadas pelo privilégio de ter o paciente importante.

Nada tenho contra isso. Se vocês procurarem no meu blog, jamais censurei o fato de Dilma Rousseff e Lula terem se tratado de câncer no Sírio-Libanês. Ao contrário: eu critiquei o berreiro da extrema-direita e dos bolsonaristas que indagavam: "Por que não se tratam no SUS?" Da mesma sorte, não endosso a corrente que agora propaga: "Por que Bolsonaro não vai se tratar num hospital militar?"

Acho que ele tem de se tratar onde achar melhor e onde o seu dinheiro puder pagar — ou onde lhe oferecerem o melhor tratamento possível, ainda que de graça. Também não estou especulando quem está arcando com a conta. Se isso tem relevância, não constitui meu modo de fazer jornalismo. Eu tenho indisposição física com esse espírito de matilha que toma conta das redes sociais.

Que o deputado fique bom logo. Se a maioria dos brasileiros que vão votar o quiser presidente da República, então presidente da República ele será. Na democracia, os povos têm o governo que merecem ter. E ponto.

Agora à foto
Ali está o deputado Bolsonaro, na UTI do Einstein, a simular com as mãos uma arma, o que se tornou símbolo de sua campanha. A foto, é fato, restará como um emblema destes dias. Vamos ver como vai ser lida no futuro. Como sabemos, o conteúdo de uma imagem está sempre aberto. A história vai lhe alterando o sentido com o tempo. Caso se eleja presidente e consiga generalizar a posse — E O PORTE — de arma como diz que pretende fazer, saber-se-á, nesse caso, os efeitos da medida. É bem possível que o próprio Einstein, mesmo sendo um hospital de elite, acabe tendo de investir na formação de médicos e paramédicos especializados em pessoas feridas à bala.

Mas uma coisa não depende da história do futuro porque remete a uma essencialidade.

A palavra "hospital" deriva da palavra latina "hospes" — que é também a raiz de "hóspede". O "hospes/hospitis". Em latim, o "hospes" designa tanto o que hospeda como aquele que se hospeda. Nos dois casos, pressupõe-se uma virtude: ao hospedador, cabe a gentileza, a "hospitalidade"; ao que se hospeda, a reciprocidade. Na origem, designa, na verdade, o abrigo dado ao estrangeiro, ao que veio de fora.

Nada é mais incompatível com uma arma, ainda que esta seja só um simbolismo, do que, pois, um hospital. Seja porque a palavra, em sentido hoje corrente, é o local para tratamento de doentes e feridos, seja porque, por imposição da etimologia e da civilidade, é o lugar em que se abrigam os diferentes.

Ainda que se queira afirmar que a "arma" de Bolsonaro serve à audodefesa e ao combate dos bandidos, convenha-se: não é o hospital o palco adequado para esse tipo de manifestação. Quando os partidários de Bolsonaro, com a sua concordância — já que em pleno domínio, que se saiba, de suas faculdades mentais — fazem esse tipo de coisa, associam, queiram ou não, o hospital a um instrumento que serve para tirar vidas, não para salvá-las. De Hipócrates ao bom senso, todos saem atingidos.

Da mesma sorte, parece-me que cabe, sim, à instituição buscar coibir a gravação de vídeos de puro proselitismo político dentro do hospital. O candidato dispõe de um número impressionante de seguidores para tocar a campanha. E ela está em curso.

Qualquer que seja a forma do futuro, o Brasil e o Albert Einstein continuam.

Com triunfo de quais valores?

Um hospital é e será sempre, porque sempre foi, o lugar de aceitação do "outro".  Até a semana passada, um leito de UTI não tinha sido associado a uma pistola.

E não deve ser.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.