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Reinaldo Azevedo

Entrevista de futuro ministro da Educação tem suavidade, mas nada diz. É a conversa oca a serviço do autoritarismo e da ineficiência certa

Reinaldo Azevedo

27/11/2018 17h37

Ricardo Vélez Rodriguez concedeu sua primeira entrevista depois de indicado ministro. É evidente que adotou a pauta do projeto "Escola Sem Partido", mas escolheu a fala mansa em lugar da virulência que marca a atuação dos prosélitos da turma. Então o que eu chamaria de autoritarismo da imprecisão vai sendo vazado, assim, como quem dissesse coisas razoáveis.

A primeira coisa estupefaciente é afirmar que que, "se o presidente se interessar, ninguém vai impedi-lo" de ver previamente a prova do Enem. É mesmo? A garantia de sigilo das provas do Enem requer uma verdadeira operação de guerra, da qual o Exército participa. Tudo para assegurar o sigilo.

Venham cá: Bolsonaro vai se meter na reunião do Copom para dar pitaco na taxa de juros, que afeta a vida de cem por cento dos brasileiros? Vai ser previamente avisado das operações da Polícia Federal? Vai querer acompanhar os testes de admissão de homens para as Forças Armadas? Vai querer examinar previamente os exames para candidatos a oficiais das Forças Armadas? Por que o Enem?

Uma pergunta: se houver algum cavalo de troia ideológico numa prova de química, ele estará preparado para vetar? Qual é a sua intimidade — e eu faria tal pergunta a qualquer presidente — com os temas relativos à linguagem e às ciências para exercer o poder de veto?

Quando é que começa o disciplinamento das corridas de cavalo, da cava dos maiôs das misses e da ousadia dos biquínis nas praias? Quando é que se dirá: "É preciso mudar isso daí!"?

A propósito: ainda que existam más questões nas provas do Enem, alguém realmente acredita que elas sejam um momento importante da tal "doutrinação"? Há uma grande diferença entre o necessário debate da pertinência dessa ou daquelas questões e o exercício do papel censório do presidente da República.

Sobre o Escola Sem Partido, afirmou o ministro:
"Acho que está acontecendo uma discussão muito aberta e vai haver uma moderação na regulamentação disso. Não acredito que haja violação dos direitos das pessoas para se exprimirem"

Vivemos sob a égide, também na fala do futuro ministro, de um certo "disso", seja "isso" o que for. "Disso" o quê? O que está em votação na Câmara fere os Artigos 5º e 220 da Constituição; no caso das universidades, o 207 também.

E aí emenda o ministro:
"Eu acho que a doutrinação não é boa para o aluno, nos primeiros anos, no ensino básico, fundamental, tem que ser educado fundamentalmente para integrar-se na sua comunidade, no seu país, que é um país suprapartidário. Não é um partido político que vai fazer com que o menino, o jovem tenha consciência cidadã."

Sim, é verdade. Mas o que impede que haja essa integração à comunidade? Será mesmo a ideologização do ensino? Isso é um delírio que não encontra respaldo nos fatos. Se e quando há doutrinação, são práticas marginais. E, ainda que verdadeira fosse, então, a doutrinação em massa, a sua ineficiência está comprovada pelo resultado das eleições, não é mesmo? A menos que se considere que os 45% de votos válidos obtidos pelo opositor de Bolsonaro decorrem, então, do trabalho de doutrinadores. A consideração embutiria a hipótese de que não fosse, então, a ação deletéria de esquerdistas, o capitão teria sido eleito com 100% dos votos válidos.

Aí afirma o doutor sobre educação de gênero:
"Então eu acredito que, quando consultadas as pessoas onde moram, enxergando o indivíduo, a educação de gênero é um negócio que vem de cima para baixo, de uma forma vertical e não respeita muito as individualidades. A culminância da individualização qual é? A sexualidade. Então, se eu brigo com um indivíduo, vou brigar com a sexualidade e vou querer regulamentar a sociedade por decreto, o que não é bom. Eu acho que é um tiro fora do alvo".

Eu gostaria que o professor Vélez Rodrigues fizesse o seguinte: que isolasse o material que está sendo empregado em sala de aula, especialmente para as criancinhas, em que a famigerada e suposta educação de gênero estaria ancorada. Cadê? Onde está? Que material é esse? Onde se encontra esse exército de doutrinadores de gênero a perverter as nossas criancinhas?

Isso é uma invenção do discurso ideológico. Criou-se essa narrativa e, a partir dela, pretende-se impor uma patrulha às salas de aula que, esta sim, tem o ânimo doutrinador. Ou, para ficar em expressões empregadas pelo próprio professor, quando ele afirma que a educação tem de ser pautada pelos "valores tradicionais" da cultura brasileira, convém que se defina, então, o que é um "valor tradicional".

Uma escola que atuasse de modo a minimizar os efeitos do bullying contra estudantes marcados por alguma diferença em relação à maioria, de modo a que não agrida direitos dos demais estudantes, estaria agredindo os valores tradicionais? Estaria indo além do que compete à escola fazer?

Diz ainda o futuro ministro:
"É aí onde se forma a consciência cidadã, a educação para cidadania, e onde se pode começar a resgatar a qualidade do nosso ensino. Acho que temos a necessidade de voltar os olhos para o cidadão, para o aluno, para a pessoa, para as pessoas individuais, com suas diferenças, suas preocupações."

Com a devida vênia, essa fala não quer dizer nada. Aliás, ela poderia estar na boca de um esquerdista qualquer, que considera a "educação para a cidadania" mais importante do que qualquer conteúdo. Nunca soube o que isso quer dizer e sempre combati essa conversa mole.

Parece-me que a extrema-direita pegou o método que a esquerda tentou implementar, sem sucesso, na educação e pretende apenas mudar a sua chave. Então, em vez de tentar educar para a cidadania da contestação, tenta-se a cidadania da peroração. Ou por outra: em vez de buscar treinar os alunos na luta contra o sistema, vai-se buscar o treinamento para que ele se torne um entusiasta dos valores considerados consagrados.

Uma e outra coisa, se bem-sucedidas, rebaixariam o papel da escola.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.