Topo

Reinaldo Azevedo

Outro vexame: o ministro do Meio Ambiente, o colunista alemão e o nazismo

Reinaldo Azevedo

06/03/2019 23h42

Ricardo Salles: para responder a uma crítica de colunista alemão, ele associa o profissional e toda a Alemanha ao nazismo

É, meus caros, não vai ser fácil. Ou se põe um freio de arrumação na desordem, ou as coisas vão se complicar muito.

Leio o que segue no jornal Valor Econômico. Volto em seguida:

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, atacou a Alemanha ao responder a um artigo publicado no site da edição brasileira da "Deutsche Welle", emissora internacional daquele país. No texto, o colunista Philipp Lichterbeck diz que o governo de Jair Bolsonaro caminha para "transformar o meio ambiente brasileiro num inferno". Pelo Twitter, Salles disse que o cenário descrito no artigo era semelhante ao da Alemanha na época do nazismo. "Essa sua descrição se parece mais com o que a própria Alemanha fez com as crianças judias e tantos outros milhões de torturados e mortos em seus campos de concentração", escreveu o ministro.

Salles sublinhou e reproduziu trecho do artigo em que Lichterbeck diz que o governo Bolsonaro é composto por "pessoas que agem e falam com arrogância e crueldade", que "riem quando morre uma criança de sete anos" [em referência ao neto do ex-presidente Lula], que "comemoram quando a polícia comete massacres em favelas, quando morrem ambientalistas ou vereadoras negras". O colunista cita ainda a suposta relação do governo com milícias e corrupção.

Questionado por seguidores, o ministro justificou a declaração. Disse não ter falado do povo alemão, mas sim de uma rede pública de comunicação da Alemanha. "Essa rede não pode denegrir um outro país desse jeito em sua página oficial", disse Salles. "Isso não tem nada a ver com discussão sobre meio ambiente. É ofensa pura e simples", complementou o ministro.

Comento
Não adianta. Falta a essa turma de Jair Bolsonaro uma expressão a que Paulo Francis recorria com frequência: "experiência social".

Salles tem todo o direito de não gostar da crítica feita por Philipp Lichterbeck. Mas a sua reação é uma estupidez. Associar as palavras do colunista ao nazismo porque Lichterbeck é alemão é só manifestação de preconceito, desvario e, tudo indica, desinformação histórica.

Na resposta que deu às críticas que recebeu em razão da generalização, piorou tudo. Disse que "a rede não pode denegrir um outro país". As considerações foram dirigidas ao governo Bolsonaro, não ao Brasil. Quem associou todo um povo, incluindo o crítico, à violência sistemática e organizada foi Salles. Fosse como ele quer, um alemão jamais poderia emitir uma opinião porque há o nazismo em seu passado.

Há horrores maiores e menores na história dos povos. De duração mais longa ou mais curta. De letalidade imediata ou que se vai dando ao longo dos séculos.

O passado escravagista do Brasil retira a autoridade dos brasileiros para emitir opinião, inclusive sobre o nazismo? Nem vou perguntar se Salles se sente corresponsável pela civilização do chicote e do pelourinho porque é possível que ele diga que não. Temo que ele me responda, como seu chefe, que "os portugueses nem pisaram na África".

A propósito: cumpre que ele tome cuidado com o verbo "denigrir" (essa forma é preferível a "denegrir") como sinônimo de "detratar", de "aviltar". Em seu favor, noto que tal sentido, com efeito, precede qualquer intenção de subestimar um grupo de pessoas em razão da cor de sua pele. Nuvens negras eram sinônimo de coisa ruim já na "Ilíada".

Mas aí temos a história, não é? A linguagem também vai sendo inoculada pelo preconceito. Gente de bem, lá no meu interior, ignorando a história e a etimologia, me ensinou que não se deve "judiar de ninguém". Quando descobri a origem da palavra — "seguir a religião e as leis judaicas" —, nunca mais empreguei a palavra, já faz algumas décadas. E não permito que se a empregue sem a minha admoestação.

A palavra "judiar" como sinônimo de "maltratar" nasceu de um preconceito, viu perder-se a sua origem, mas o fato é que conhecemos a história. Não se trata de ser politicamente correto. Trata-se de ser politicamente justo.

A palavra "denigrir" antecede o debate sobre o racismo, mas se imbricou com ele. E é fato que conhecemos a história. Não se trata de ser politicamente correto. Mas de ser politicamente justo.

No dia em que o governo Bolsonaro se torna motivo de chacota mundo afora, o ministro do Meio Ambiente deveria ter colaborado para resgatar a salubridade no ambiente intelectual.

Mas ele fez o contrário porque não aceita que "denigram" o país. E aí resolveu jogar o nazismo nas costas de um crítico do governo que ele integra.

Neste ponto, eu deveria pedir que Bolsonaro pusesse ordem na casa. Mas a recomendação iria parecer sem sentido.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.