1964 hoje-2: Revisionismo burro, Comissão da Verdade, indenização e anistia
O revisionismo que tenta reescrever fatos gritantemente óbvios é sempre uma estupidez, pouco importa se serve à direita ou à esquerda. Vamos ver.
A transição da ditadura para a democracia no Brasil foi relativamente pacífica quando a comparamos com a de países que passaram por situações semelhantes ou que saíram de regimes de força. Por aqui se prendeu, se torturou, se matou, como sói acontecer… O fato é que a Anistia de 1979 acabou servindo como um princípio pacificador. E que atendeu a todos os lados. Sim, também as esquerdas armadas mataram. Ao menos 122 pessoas. Não eram pombas da paz. Não! Não sou o tipo de tolo que sustenta que mortes patrocinadas por um Estado totalitário se equiparam àquelas praticadas por terroristas. É tudo abominável. Mas são horrores distintos. Que se combinam.
E por que se paga indenização quando as vítimas eram esquerdistas assassinados pelo regime militar? Porque era terrorismo de Estado, e o Estado permanece como ente. Seria difícil cobrar indenização da ALN de Carlos Marighella, não é mesmo? Ou da VAR-Palmares. Falemos um pouco sobre o assunto.
OS ABUSOS
Sim. Fez-se a tal "Comissão da Verdade". Indenizações justas e injustas foram pagas. Pensões justas e injustas ainda são pagas. Todos os que, rendidos, morreram nas mãos do Estado foram vítimas de um crime de Estado. E pouco importa se eram pessoas boas ou não, se faziam coisas decentes ou não, se tinham pretensões assassinas ou não. Nesse caso, a reparação à família é devida e é uma obrigação moral. E, sim, é uma dívida do Estado brasileiro, pouco importa quem seja o governo. Sempre foi a minha posição. Procurem nos arquivos.
Mas também é verdade que se pagou e se paga uma espécie de previdência para esquerdista aposentado, o que corresponde a escarnecer da história. E dos que realmente sofreram. Eu não tenho a menor dúvida de que houve abusos perdulários no pagamento de reparações.
Assim como Bolsonaro quer rever 1964 agora, sob as lentes da justificação e da exaltação do golpe, as esquerdas aproveitaram alguns anos de poder para tentar fazer o contrário: colocar-se como defensores da democracia e da paz que teriam sido esmagados por trogloditas. E foi nesse contexto que se tentou, mais de uma vez, a revisão da Lei da Anistia — e, claro, para punir apenas os agentes do Estado e afins.
E a revisão da Lei da Anistia sempre encontrou neste escriba um duro opositor. Justamente porque atendia ao furor revisionista. Eu tenho lado nessas coisas: o do Estado de Direito; o da pactuação política; o do futuro. Mais: a revisão agredia o aparato legal. Querem ver?
REVISÃO DA ANISTIA É IMPOSSÍVEL. VEJA POR QUÊ
A Lei 6683, de 1979, a da Anistia, é clara:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
A própria Emenda Constitucional nº 26, de 1985, QUE É NADA MENOS DO QUE AQUELA QUE CONVOCA A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, incorporou, de fato, a anistia. Está no artigo 4º:
Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.
§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.
§ 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no "caput" deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Mais: o dispositivo constitucional que exclui a tortura dos crimes passíveis de anistia é de 1988, posterior, portanto, à Lei da Anistia, que é de 1979 e não pode retroagir.
Anistia não é absolvição, mas perdão político. Os pactos históricos produzem frutos, que empurram os países para um lado ou para outro. A Espanha juntou todas as forças políticas em favor de uma transição pacífica da ditadura franquista para a democracia, de que o "Pacto de Moncloa" (1977) é um símbolo. O midiático juiz Baltasar Garzón tentou fazer a história recuar quase 40 anos, mas a moderna sociedade espanhola rejeitou suas propostas. A África do Sul ficou entre punir todos os remanescentes do regime do apartheid e a pacificação.
COERÊNCIA
É uma tolice tentar encontrar incoerência minha nessas coisas. A razão é simples. Não vou escolhendo isso ou aquilo a granel. Os princípios pautam as minhas escolhas.
Comemorar 1964, hoje em dia, nos quarteis faz tanto sentido como querer rever a Lei da Anistia. É só uma manifestação de atraso, que tem o incômodo de soar também como ameaça.