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Reinaldo Azevedo

O deputado gay e bolsonarista, tapas numa trans e fundamentos da civilidade

Reinaldo Azevedo

06/04/2019 19h57

Douglas Garcia, deputado estadual do PSL-SP: não importam cor, orientação e origem. Ele está obrigado à civilidade

O deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), que afirmou que tiraria a tapas do banheiro em que estivesse sua mãe ou irmã um "homem que se sentisse mulher", chamando em seguida a polícia, é gay. Ele virou notícia quando decidiu criar com amigos um bloco de Carnaval chamado Porão do Dops, que acabou impedido de desfilar pela Justiça. Eles até fizeram uma paródia da marchinha "Cachaça não é água". A letra adaptada faz a apologia da morte — de bandidos, claro! "Você pensa que bandido é gente/ Bandido não é gente, não/ Bandido bom tá enterrado/ Deitado dentro de um caixão". O deputado não parece ser do tipo que é íntimo da compaixão.

Quem anunciou a sua homossexualidade foi a sua colega de partido, Janaina Paschoal, a parlamentar mais votada do país em 2018. E se tentou apelar às tintas da denúncia: depois de ameaçar estapear, então, uma mulher trans ou um travesti, sabe-se lá, ele teria passado a sofrer ameaças. De que natureza? Parece que sua orientação sexual entrou na mira de alguns inconformados com a virulência de seu discurso contra quem não ora segundo a cartilha dos, como chamar?, "sexualmente corretos". Ele mesmo não teria feito o anúncio porque "muito abalado". Mas falou com a Folha.

O deputado não conquistou seus votos anunciando que era gay. E, por óbvio, ele não está obrigado a abraçar a pauta LGBT porque faz sexo com homens. Da mesma sorte, um parlamentar negro não está obrigado a restringir a sua militância à luta contra o racismo. Uma mulher não precisa se subordinar aos fundamentos do feminismo militante — até porque este é bastante diverso. Fosse assim, tais pessoas seriam reduzidas ou a rótulos ou a porta-bandeiras. Fosse assim, só o homem branco e heterossexual seria livre para escolher o seu pensamento.

Esperto, na conversa com a Folha, Douglas faz uma auto-ironia que tem seus críticos como alvo. Diz sobre si mesmo: "Negro, gay e favelado. Pronto, sou o combo do vitimismo brasileiro". A frase é boa, mas é pura marquetagem. Já os negros e favelados não formam a maioria das "vítimas brasileiras". É evidência de ignorância. A maioria dos pobres, por exemplo, não está nas favelas. Douglas precisa estudar. Não basta ser negro, favelado e bolsonarista para ter razão. Se a tais atributos se soma o fato de ser gay, o tal "combo do vitimismo brasileiro" se torna ainda menos evidente,

Douglas não percebeu, ou finge que não, sei lá, que a sua fala é imprópria, não importa sua orientação sexual, sua origem social ou a cor de sua pele. Se rende um bom debate a questão que ele propôs, aquela sobre o banheiro, certamente não é no tapa que se vai resolver o caso. Mais: o debate surgiu quando ele dava apoio a uma proposição de um colega que quer transformar em lei que o sexo biológico seja o único critério para definir se um atleta que compete em partidas oficiais do estado é homem ou mulher. Ou seja, esportistas trans não poderiam atuar numa equipe que corresponda ao gênero com o qual se identificam.

Sim, também nesse caso há matizes civilizatórios e brutalistas, e não há dúvida de que Douglas escolheu o brutalismo. É evidente que alguém que tivesse doses de testosterona compatíveis com as de um homem não poderia competir como mulher em esportes em que a força física pode definir o resultado. Douglas ainda não sabe que os meios escolhidos para um debate podem determinar o seu fim.

O rapaz não quer, e tem todo o direito de que assim seja, se restringir à militância gay como deputado estadual. Ok. Mas a evidência de que está tentando ser aceito num grupo que o rejeita por princípio, o do bolsonarismo, está nesta fala bárbara:
"E a homofobia, como combater? Vamos seguir a agenda do presidente, que quer legalizar as armas de fogo. Já pensou que maravilha seria se a mulher, o gay, poderem se defender contra um machista, um homofóbico?"

A afirmação é de uma estupidez assombrosa. Dizendo-se uma pessoa avessa ao politicamente correto, nota-se que Douglas não acredita na militância gay, trans ou de qualquer outra natureza para diminuir o preconceito e desencorajar as agressões: na sua formulação, também o gay se defenderia das agressões na base da bala. Dada a sua estupidez fundamental, um homofóbico, então, não ameaçaria um gay se soubesse que este poderia estar armado. O deputado só não considera que, nessa hipótese, também o molestador estaria com o berro na mão.

Douglas tem apenas 25 anos. Dá tempo de aprender. Sabe-se lá por que diabos lutou tanto para ser aceito por quem essencialmente o despreza. Seu líder político já afirmou que preferiria um filho morto a um filho gay. Ainda não retirou a frase, o que, todos sabemos, deveria fazer. Também já disse que só existem gays como Douglas porque os pais não deram um "couro", uma surra, na criança no tempo certo.

Mas Douglas não tem o direito de admirar gente que acha que só existem pessoas como ele porque não tomaram uma surra no tempo adequado e porque, infelizmente, sobreviveram? Ora, claro que tem! Pergunte-se no entanto: se isso não lhe causa constrangimento intelectual, moral e ético, o que causará?

Douglas não é o único gay bolsonarista. E certamente não é o único gay a evidenciar transfobia. As pessoas, gays ou não, trans ou não, são livres para fazer suas escolhas. O deputado não está obrigado a aderir a combo nenhum. Eu o convido apenas a ser civilizado e tolerante. Inclusive consigo mesmo, levando em conta um dado essencial: o fato de eventualmente odiar-se não o libera para odiar os outros. A autoflagelação não é desculpa para a intolerância. Caso se ame e tenha uma autoestima elevadíssima, aí o conjunto da obra é moralmente irredimível.

Que converse mais com sua colega Janaina Paschoal. Ela certamente não esqueceu alguns fundamentos sobre direitos… fundamentais!

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.