Foro de São Paulo da extrema-direita? Bolsonaro agora se mete na Argentina
O presidente Jair Bolsonaro fez outra burrada monumental. Na sua live desta quinta — aquela que imita a estética Al Qaeda —, pediu ao povo argentino que não vote em Cristina Kirschner nas eleições de outubro. Ou, afirmou, o país vira outra Venezuela. Se não for impedida pela Justiça, Cristina pretende disputar de novo a Casa Rosada contra o atual presidente, Maurício Macri, que conduz um governo desastroso. Nas pesquisas de opinião, a ex-mandatária aparece na frente. A fala de Bolsonaro é um absurdo e uma temeridade, que viola, mais uma vez, os Incisos III e IV do Artigo 4º da Constituição, que consagram os princípios da autodeterminação dos povos e da não-intervenção. Segue o vídeo. Volto ao ponto daqui a pouco.
Sei bem o que escrevi quando Lula resolveu se meter nas eleições venezuelanas. E o fez não uma, mas duas vezes: em 2012, gravou um vídeo em apoio à reeleição de Hugo Chávez. Bati pesado. Meu texto está aqui. Chegou a dizer esta maravilha:
"Chávez, conte comigo; conte conosco, do PT; conte com a solidariedade e apoio de cada militante de esquerda, de cada democrata e de cada latino-americano. Tua vitória será a nossa vitória". Disse mais: "Os governos progressistas estão mudando a face da América Latina. Graças a eles, nosso continente se desenvolve de modo acelerado, com crescimento econômico, criação de empregos, distribuição de renda e inclusão social"
Eu o contestei com estas palavras:
"A Venezuela caminha célere para o caos econômico e se ancora exclusivamente no petróleo; a Argentina já foi para o vinagre — é questão de tempo (Cristina Kirchner não é do Foro, mas foi adotada pela turma); as economias de Bolívia e Equador sobrevivem apesar do governo, não por causa dele. A administração supostamente esquerdista do Peru não mexeu uma vírgula no modelo dito 'neoliberal' que herdou de Alan García. Estáveis mesmo são a Colômbia e o Chile, que estão fora da influência nefasta do Foro. Diz (Lula): 'Hoje, somos referência internacional de alternativa vitoriosa ao neoliberalismo'. Trata-se de um cretinismo ímpar. "Somos", quem? No essencial, o próprio Lula não alterou aquilo que recebeu — no que mexeu, foi para pior. "Novo modelo" — que é muito velho —, quem testa é Chávez. E é um desastre."
Como se nota, eu estava certo, e Lula, errado. Vejam.
APOIO A MADURO
Em 2013, o líder petista voltou à carga, aí em apoio a Nicolás Maduro. E o critiquei de novo, como se pode ler aqui. Afirmou que, como ministro das Relações Exteriores, "Maduro se destacou brilhantemente para projetar a Venezuela no mundo e na construção de uma América Latina mais democrática e solidária".
Escrevi ao criticar o ex-presidente:
"A Venezuela se tornou uma economia de uma só riqueza. Lula afirma que o chavismo sempre deu importância à indústria e à agricultura. Que coisa! A primeira vive em estado terminal; a segunda acabou."
AOS DIAS DE HOJE
Agora é Bolsonaro quem fala a seguinte bobagem:
"A questão aqui da Argentina. Ninguém aqui vai se envolver em questões fora do país. Mas, eu, aqui como cidadão, todos aqui como cidadãos têm uma preocupação de que volte o governo anterior do Macri (sic). A presidente anterior [Cristina Kirchner] era ligada com Dilma, com Lula, com a Venezuela de Maduro e de Chávez, com Cuba. Se isso voltar, com toda a certeza, a Argentina vai entrar numa situação semelhante à da Venezuela (…). Eu espero que os nossos irmãos argentinos se conscientizem disso. Se o Macri não tá indo bem, paciência até… Vai lutar para melhorar. Ou alguém da linha dele. Agora, o que não pode é voltar Cristina Kirchner, que, no meu entender, os reflexos serão para o povo argentino e para todos nós. Poderemos, sim, com a volta de Cristina Kirchner, possível volta, peço a Deus que não aconteça, a nossa querida Argentina se transformar numa Venezuela, e não queremos isso".
Cumpre notar: o que fez Lula em 2012 e 2013 era uma estupidez política, e a Venezuela que está aí o prova por si mesma. Mas atenção! Ele não era mais presidente. Quem estava no comando do país era Dilma Rousseff, e ela não declarou apoio a ninguém. Bati duro em Lula e no PT porque estavam apoiando um regime autoritário, que conduzia a Venezuela ao desastre. Mas ele era um líder político fora do poder e podia falar as bobagens que quisesse.
Não é o caso de Bolsonaro, santo Deus! Ele é presidente da República. O que fez só serve para desmoralizá-lo aos olhos do mundo. A Argentina segue sendo, mesmo em período ruim, o terceiro país no ranking das exportações brasileiras. Em 2017, o Brasil teve um saldo positivo de US$ 8,184 bilhões nas relações comerciais com o país, o melhor da história. Em 2018, em razão da crise no país vizinho, sob o comando de Macri — tão apreciado por Bolsonaro —, esse valor se reduziu à metade: US$ 3,9 bilhões. E a coisa está piorando. No primeiro trimestre do ano passado, que já não foi tão bom como em 2017, o Brasil teve um superávit no comércio bilateral de US$ 2,04 bilhões; neste ano, no mesmo período, um déficit de US$ 333,75 milhões. A queda nas exportações brasileiras foi brutal na comparação entre os dois períodos: de US$ 4,39 bilhões para US$ 2,34 bilhões. Já as importações subiram de US$ 2,35 bilhões para US$ 2,68 bilhões.
Além de a intervenção de Bolsonaro ser, por si, absurda — procurem no mundo exemplos de governantes que dão palpites nas eleições de um outro país —, mete o dedo em vespeiro e faz terrorismo eleitoral com aquele que é um dos principais parceiros comerciais do Brasil. E se Cristina vencer suas dificuldades com a Justiça e se eleger presidente? Ainda que seja derrotada, sobra a estupidez de Bolsonaro. O que ele pretende? Ser a versão de extrema-direita do Foro de São Paulo?
Há mais: a intervenção do presidente brasileiro pode ter um efeito contrário ao pretendido. Se Cristina souber explorar as insatisfações populares e o espírito nacionalista — e ela é hábil nisso —, a fala do dito "Mito" pode reforçar a adesão à candidatura da ex-presidente. A propósito: um outro governante já se meteu nas eleições argentinas. Refiro-me a Hugo Chávez. E, no caso, para apoiar Cristina.
Observem o modo como Bolsonaro busca construir a sua liderança internacional: tentando derrubar o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro — que é, sim, um ditador, mas há um decoro internacional a ser cumprido — e se imiscuindo na política interna da Argentina. Não é por acaso que entidades e marcas comerciais de alcance global buscam hoje se dissociar do seu nome.
Certamente não disse o que disse de improviso. A operação deve ter sido combinada com seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, aquele que declarou acreditar no "Deus de Donald Trump". Ah, sim: Bolsonaro já declarou apoio à sua reeleição.
Também na política externa, estamos diante de um desastre sem precedentes.
Nota: eu espero que Cristina Kirchner seja derrotada se candidata. Mas sou apenas um jornalista, não um presidente da República.