Depois dos tiros sobre a carne preta e pobre, Witzel vai para hotel de luxo
Assistam a este vídeo:
O despudor do governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), em temas relacionados à segurança pública, dentre outros, deve assombrar até os fãs mais entusiasmados do presidente Jair Bolsonaro, que costumam regurgitar por aí aquela frase que vale como divisa de um esquadrão da morte: "Direitos humanos para humanos direitos". Witzel pretende ser uma alternativa ainda mais truculenta ao, vamos dizer, bolsonarismo de raiz. Se o presidente conta com generais no Palácio que lhe servem, ainda que precariamente, de elemento de contenção, Witzel pode atuar sem freios. E seu despudor é assombroso.
Na tarde de sábado, nós o vimos embarcar num helicóptero da polícia que depois é flagrado despejando uma chuva de balas sobre comunidades necessariamente pobres de Angra dos Reis — ou havia mansões do outro lado do cano? Na sequência, o governador se hospedou com a família no hotel Fasano da cidade, considerado de altíssimo luxo. Passou lá o fim de semana. A diária mais barata sai a R$ 1.600. Por pessoa. A assessoria do governo não quis dizer quem pagou. Um fim de semana e tanto para a sua visão de mundo e a de seus admiradores, não é? Depois de participar de uma operação que despejou uma saraivada contra áreas em que moram pobres, o governador foi curtir um pouco a vida entre os ricos. Tentei saber quantas arrobas de carne preta e pobre a operação rendeu neste fim de semana, enquanto o governador se esgueirava entre lençóis de algodão egípcio, mas não há dados disponíveis.
À frente de um helicóptero já com os motores ligados, Witzel grava um vídeo ao lado de Fernando Jordão (MDB), prefeito de Angra, e anuncia:
"Olá pessoal, estamos começando aqui em Angra dos Reis, a pedido do prefeito, Fernando Jordão, uma operação em Angra dos Reis. Começando com a Core, com a Polícia Militar, com a Polícia Civil, para acabar de vez com a bandidagem que está aterrorizando a nossa cidade maravilhosa de Angra dos Reis. Fernando Jordão, tá aqui o pessoal, ó, o pessoal da Core, o helicóptero, vamos começar hoje a operação. Acabou a bagunça. Vamos colocar ordem na casa. Vambora!"
A Core é a Coordenadoria de Recursos Especiais do governo. Num outro vídeo, o governador está dentro do helicóptero e diz:
"Estamos iniciando, hoje aqui, uma operação aqui em Angra dos Reis, com a Core, trouxe aqui o nosso pessoal, o delegado (Fábio) Baruck, o delegado Marcus Vinicius, o prefeito Jordão. Vamos botar fim a bandidagem de Angra dos Reis. Acabou"
Witzel é uma personagem, uma espécie de bufão truculento, do populismo de extrema-direita. Isso requer uma caracterização. Com uma camisa polo impossivelmente comprida que busca esconder a barriga — e esta, por si, não indica caráter bom ou ruim, é claro —, ele apela, no entanto, a um gestual de braços que tenta vender tecidos adiposos como se musculosos fossem. No imaginário dessa personagem patética, isso deve parecer mais adequado ao homem que não tem medo de disparar tiros contra áreas em que moram os pobres de tão pretos e os pretos de tão pobres.
A estética era miliciana. A ética também.
Num outro vídeo, vemos um helicóptero igual àquele em que embarcou o governador, a despejar tiros. Contra quem? Contra quais alvos? Com quais consequências? Segundo disse Witzel, o alvo era a "bandidagem". Não se informou se a Polícia buscava um, dois ou dez criminosos; se respondia a alguma agressão em particular; se era uma operação para instalar bases policiais naquelas comunidades, expulsando, então, os tais bandidos. Uma coisa é certa: as balas que se despejavam lá de cima não tinham como distinguir a carne preta e pobre de inocentes da carne preta e pobre de culpados. A única coisa que se tem de certo é que cumpria à carne preta e pobre, culpada ou não, tentar se proteger da expedição comandada pelo próprio governador.
Isso tudo deve ter sido muito estressante a esse patriota. E aí foi preciso deslizar seus tecidos adiposos que se faziam de musculosa severidade nos lençóis de algodão egípcio.
MILÍCIAS
Em recente entrevista, indagado sobre o poder das milícias, o governador disse o seguinte:
"Eu não acredito que a milícia seja a principal chaga do estado. Ela é uma organização criminosa e estamos combatendo."
Há nada menos de 2 milhões de pessoas que vivem hoje no Rio em áreas comandadas pelas milícias e que estão sujeitas à sua governança. A tragédia dos desabamentos da Muzema tem a sua marca. A organização está infiltrada nas polícias, na Assembleia Legislativa e nas Câmaras de Vereadores de várias cidades, incluindo a Capital. Adriano Magalhães da Nóbrega, o chefão do "Escritório do Crime", uma das organizações que atuavam na Zona Oeste do Rio, está foragido. Ele é um dos investigados no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Ninguém aposta que vá ser encontrado um dia…
Witzel, como esquecer?, integrava a turma que resolveu rasgar uma placa que fazia uma homenagem simbólica à vereadora assassinada por milicianos. Atenção: se fôssemos dividir as personagens todas em dois grupos, é fatal considerar que, de um lado, ficou a morta e, de outro, seus assassinos e aqueles que rasgaram a placa — ainda que isso não implique que tenham vínculo direto com a execução. O vínculo moral é inegável.
O que vai fazer o Ministério Público Estadual do Rio? É o ente que faz o controle externo da atividade policial. Aquela de sábado, comandada pessoalmente pelo governador, estava limitada por quais parâmetros e tinha exatamente qual objetivo? A propósito: o governador pensa, algum dia, em arreganhar os dentes também para as milícias ou continuará, em entrevistas, a dizer que o demônio não é tão feio como se pinta — o que, parece-me, corresponde a dar uma piscadela para o tinhoso?
Ah, sim: se um dia o ex-juiz Witzel resolver jogar balas contra milicianos, o que duvido que vá acontecer, convém não repetir o padrão de Angra dos Reis. É que a população, nesses casos, é sempre refém: seja do narcotráfico sem milicianos, seja do narcotráfico e outros tráficos com milicianos.
O Ministério Público do Rio vai acordar para o morticínio da carne preta e pobre que se está a promover no Estado? E, com efeito, caras e caros, convém que fiquemos atentos ao número de pessoas mortas no Brasil inteiro. Quando um governador de Estado faz o que fez Witzel, é sinal de que se considera que está dada a licença para matar — como, de resto, propõe Sérgio Moro, o queridinho de jornalistas que ainda dizem se preocupar com direitos humanos e com o combate à corrupção — em seu pacote anticrime.
A pior corrupção sempre será a do caráter. É a mãe de todas as outras.
Quem vai tirar a mão de Witzel do gatilho por força da lei?