Força de manifestações surpreende até os organizadores; lembrai-vos de 2013
É cedo para dizer se as ruas já acordaram contra Jair Bolsonaro. Um dado alvissareiro para os promotores do protesto e preocupante para o governo: a adesão foi maior do que esperavam os próprios grupos empenhados em levar gente para a rua. Se há uma sabedoria firmada sobre coisas dessa natureza, é esta: sabemos como começam; nunca sabemos como terminam. As jornadas de junho de 2013 ainda não foram devidamente estudadas, mas são muito eloquentes.
Naquele caso, a extrema-esquerda, o Movimento Passe Livre, fez o primeiro chamamento. Protestos em Salvador e Florianópolis contra o aumento de passagens de ônibus haviam sido bem-sucedidos. Chegaram a São Paulo nos dias 6 e 7 de junho daquele ano. De novo, no dia 11; outro gigantesco no dia 13. Multiplicaram-se pelas capitais e grandes cidades, e as esquerdas claramente perderam o monopólio da pauta e da mobilização, que se estendeu 2014 afora, com protestos contra os gastos com a Copa. Querem ver o efeito?
No dia 31 de março de 2013, 65% achavam o governo Dilma "ótimo ou bom"; só 7% diziam ser "ruim ou péssimo"; para 27%, era regular. No dia 10 de junho, a aprovação ainda era considerável, embora em queda: 57% de ótimo e bom, contra 9% que diziam o oposto: ruim/péssimo. O regular saltava para 33%. Havia algo latente. Os protestos abriram as comportas da insatisfação. No dia 29 daquele mesmo junho, o índice de "ótimo e bom" do governo despencou 27 pontos e ficou em apenas 30%; o "ruim/péssimo" bateu nos 25%, e o regular caminhou para 43%. Foi o mais formidável evento de mudança de humor da opinião pública de que se tem notícia em tempo tão curto. Dilma começava a cair ali. Ali começava o impeachment.
Para registro histórico: tentando provar que liderava um governo que combatia a corrupção, Dilma promoveu a aprovação de dois textos legais: a chamada Lei Anticorrupção, a 12.846, que trata da punição às empresas flagradas em falcatruas — regula os acordos de leniência, por exemplo —, e a 12.850, de combate às organizações criminosas, mas sumamente importante não por isso: ali estão as regras — ou quase não-regras — para as delações premiadas. Qualquer pessoa razoável que leia os dois textos encontra falhas clamorosas, que tornam o país e qualquer governo reféns do Ministério Público e dos organismos policiais. Tentando sobreviver, Dilma cavava a sua sepultura. Aí a Lava Jato fez o resto. Sem o vale-tudo das delações, aonde teria chegado?
Não custa lembrar que o governo petista, inicialmente, flertou com os movimentos de protesto. Não percebeu que dava tiro no próprio pé, coisa para a qual alertei muitas vezes. Não saber ler as ruas, dando respostas erradas, pode, sim, ser fatal a um governo. E, como resta evidente, Bolsonaro e seus alucinados estão fazendo tudo errado.
O presidente, que está em Dallas, reagiu aos muitos milhares nas ruas — houve manifestações em ao menos 188 cidades — com esta delicadeza:
"É natural [que haja protesto], agora a maioria ali é militante, não tem nada na cabeça, se perguntar 7 vezes 8 pra ele, não sabe. Se você perguntar a fórmula da água, não sabe, não sabe nada. São uns idiotas úteis, uns imbecis, que estão sendo usados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais no Brasil".
Bolsonaro, ele mesmo, não dá mostras de saber muito mais do que a tabuada ou a fórmula da água. Tem um ministro da Educação que escreve "incitar" com "s" e que confunde Kafka com cafta. O titular da Justiça crava "conge" em vez de "cônjuge", confunde "rusgas" com "rugas" e fala "haviam pessoas". Maus exemplos de sabedoria superior.
Bastava ao presidente repetir o que afirmou seu vice: "Protestos fazem parte da democracia desde que dentro da lei". E pronto! Mas Bolsonaro não seria Bolsonaro sem ofender adversários e, para espanto de muitos, também os aliados.
Abraham Weintraub foi à Câmara explicar o contingenciamento de verbas para a Educação, que está na raiz dos protestos. A melhor ideia que teve foi acusar os governos passados e ofender os deputados, e isso incluiu os do partido do presidente, dizendo que eles não sabem o que é uma carteira de trabalho. Delegado Waldir (GO), líder do PSL na Câmara, quer convocar o ministro Onyx Lorenzoni para explicar a sugestão de que há deputados querendo levar vantagem na relação com o Planalto. Afirmou: "Vai ser convocado ou pede desculpa pra gente e fala que falou asneira".
Alguém quer colocar nesse caldeirão Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz?
É a primeira vez na história que temos um governo composto apenas de incendiários. O vice, Hamilton Mourão, que sabe atuar como bombeiro, é um dos alvos permanentes dos piromaníacos.
Se as lideranças que organizam o protesto tiverem a sabedoria de identificar e neutralizar os provocadores e não restringir a pauta à militância de seitas e partidos, Bolsonaro está muito mais encrencado do que parece.
Um cartaz chamou a minha atenção em uma das fotos: "Não sou de esquerda nem de direita; sou para a frente". Bolsonaro é incapaz de entender o sentido. Que a esquerda o entenda. Ou se abraça a seu antípoda para fortalecê-lo.