O Coaf, Moro, o Senado e o governo: problema nunca foi Mourão, mas Morinho
O governo Bolsonaro – ou melhor: o presidente Jair Bolsonaro – tem de decidir o tamanho da confusão que pretende comprar para manter uma excrescência com a qual, no passado, ele concordou por ignorância de causa: a manutenção do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) no Ministério da Justiça. Corrijo-me: a manutenção do Coaf nas mãos de Sérgio Moro. Qual é o ponto?
Na votação da Medida Provisória 870, a da reestruturação da administração, a Câmara houve por bem devolver o Coaf para o lugar de onde jamais deveria ter saído: o Ministério da Economia — na estrutura administrativa pré-Bolsonaro, estava subordinado à Fazenda, que foi absorvida pelo superministério agora chefiado por Paulo Guedes.
Não há nenhuma razão técnica para o órgão ficar subordinado à Justiça a não ser emprestar-lhe, de saída, um caráter policialesco, que não deve ter. Moro brigar tanto pelo Coaf e fazer questão de mantê-lo sob a sua alçada, afirmando ser isso essencial para o combate à corrupção, parece trazer a confissão tácita de que sua estrutura é usada para quebrar sigilos sem a autorização da Justiça. Se for assim, é um absurdo; se não for, então que Moro diga o que é.
Ora, o Coaf tem a obrigação de comunicar à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal eventuais movimentações bancárias consideradas atípicas. A quebra de sigilo, derivada de eventual investigação, tem de contar, como deve ser, com uma autorização judicial. A menos que o Coaf esteja sendo usado como um mapeamento da movimentação, atípica ou não, de eventuais alvos pré-selecionados, não há razão para que fique na Justiça.
Sabem o que me incomoda em particular nesse caso? Ninguém consegue explicar, nem o próprio Moro, por que o Coaf tem de ficar na sua pasta. Peguem uma voz estridente em favor dessa saída, a do Major Olímpio (SP), líder do PSL no Senado. Tentei encontrar o motivo que embasa a sua opinião além da cantilena de sempre, segundo a qual isso facilita o combate à corrupção. E nada encontrei a respeito. Facilita por quê? Por que, na Economia, esse nobre mister encontraria empecilhos?
Na "live" de quinta-feira, Bolsonaro deu sinais de que, por ele, tudo bem, a coisa pode ficar como a Câmara definiu. Olímpio, no entanto, não se conforma. E resolveu reagir falando em nome da, sei lá como chamar, honra do Senado. E o fez com um vocabulário que apela aos países baixos da República. Afirmou, segundo informa a Folha:
"Estamos [senadores] literalmente com saco cheio [da Câmara]. É um desrespeito. Que a Câmara seja a Casa revisora. A gente tem que votar assim e pronto? Não é assim. A capacidade escrotal está repleta, assim fica politicamente correto".
Bem, dizer o quê? A não ser por metáfora, ainda assim de gosto duvidoso, creio que a bancada feminina do Senado, que conta com 12 integrantes, não tem como compartilhar essa intolerância escrotal do senador Major Olímpio. Sei que vou exercitar aqui um dos aspectos do meu conservadorismo, não é? Mas eu preferia um tempo em que um senador da República se esforçava para manter uma linguagem até mais elevada do que aquela que se falava habitualmente mesmo na Câmara, também obrigada ao decoro, claro! É que os Senadores, por representar institucionalmente as unidades da federação, não o voto dos cidadãos, sempre buscaram um padrão mais sereno de representação porque obrigados a falar em nome do conjunto dos cidadãos. Não nos esqueçamos de que se trata de uma disputa de natureza majoritária.
Bem, qual é o ponto? Major Olímpio não é o único a advogar o lamentável equívoco. Alguns por convicção desinformada — já que a opinião agride a natureza de um órgão com a função do Coaf —, outros para se afinar com a pressão de milícias organizadas na Internet, havendo ainda aqueles que já começam a ver Moro como presidenciável, o fato é que haveria, segundo algumas estimativas, 44 senadores que estariam dispostos, na votação da MP, a devolver o Coaf para Moro, na contramão do que fez a Câmara.
O ministro se esforçou para isso. A questão foi levada às ruas no protesto a favor do governo. Moro foi para o Twitter manifestar sua gratidão. Seus seguidores estão firmes na campanha contra o Congresso — e contra a Câmara em particular. Qual é o ponto que pode levar à eventual tormenta?
Se o Senado resolver dar um voto diferente daquele da Câmara, a questão terá de passar por um reexame dos senhores deputados — isto é, por uma nova votação. Se for mantida a decisão original da Casa, é o que fica valendo. Ocorre que isso pode levar tempo. E há o risco efetivo de que a MP 870 caduque. Se acontecer, a estrutura do governo tem de voltar à sua forma pré-Bolsonaro.
Ora, o que deve fazer um governo a um só tempo responsável e corajoso, em momentos assim? Deve ter uma posição clara! Como resta evidente, ninguém está propondo o fechamento do Coaf ou lhe tirando atribuições. O que a Câmara fez foi corrigir uma aberração. "Ah, mas mexeu o com Santo Sérgio Moro…"
Bastaria à coordenação política do governo, se houvesse uma, dizer o óbvio: "O Coaf continuará a desempenhar as suas funções legais se alocado no Ministério da Economia. Assim, o governo entende que o fundamental é aprovar o texto da MP 870".
Acontece, meus caros, que há quem esteja sonhando em aplicar uma derrota ao Centrão. Há contas de jerico sendo feitas. O placar na Câmara foi de 228 a 210 em favor do Coaf no Ministério da Economia. Deixaram de votar 74 deputados (o presidente da Câmara se abstém com base no Artigo 17 do Regimento Interno). O sonho é mudar alguns votos e atrair alguns ausentes e garantir a vitória a Moro. Ocorre que a votação tem de ocorrer até o dia 3 de junho. E, por óbvio, o confronto renderia sequelas, que podem ter efeitos graves na reforma da Previdência.
Aí cabe a pergunta: isso tudo para quê? Resposta: para nada! Na hipótese irrelevante, para alimentar a vaidade de Moro. Na hipótese relevante, em reforço ao estado de caráter policial. Bolsonaro teria de dizer a Moro: "O Coaf fica na Economia, e não vou comprar essa briga, que pode trazer prejuízos ao governo e ao país".
Não sei se lhe falta, para tanto, coragem ou clareza. Ou as duas coisas.
Afinal, há quem ainda não tenha entendido que o problema real de Bolsonaro, no ambiente do governo, não é Mourão, mas Morinho.