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Reinaldo Azevedo

Entenda o imbróglio que suspendeu a privatização de gasodutos da Petrobras

Reinaldo Azevedo

28/05/2019 08h13

Vem confusão das boas por aí. Se, no entanto, as palavras fizeram sentido… Vamos ver. O ministro Edson Fachin concedeu uma liminar que suspende a venda de 90% da TAG (Transportadora Associada de Gás), subsidiária da Petrobras, para o consórcio formado pela Engie (maior geradora privada de energia) e pelo fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec. Valor da transação: R$ 33,1 bilhões. Como eu sou favorável à privatização até de Jardim da Infância (de presídios não!), minha primeira tentação foi vituperar contra Fachin. Em tempo em que muito se vitupera e pouco se lê, fui ler.

Vamos lá. O TRF-5 havia barrado em junho do ano passado a venda do controle da TAG. E o fez com base numa decisão liminar do ministro Ricardo Lewandowski — que ainda tem de ir a plenário —, segundo quem a Constituição veda a venda do controle de empresas estatais sem prévia autorização do Congresso e sem licitação.

Aí, meus caros, em síntese, vem a rotina do baguncismo brasileiro, certo? Certo! Por que digo isso? A Petrobras recorreu da decisão tomada pelo TRF-5. Ocorre que esta era só a aplicação da liminar concedida pelo ministro do STF, que está em vigência. O que fez o STJ? Ignorou a liminar de Lewandowski, como se pudesse fazê-lo, e autorizou a venda. Ora, os peticionários originais recorreram de novo.

Note: se você, a exemplo deste escriba, é favorável às privatizações e, a um só tempo, é dotado de bom senso, não deve endossar que o STJ tome uma decisão contra uma liminar, em vigência, concedida por um membro do STF e que ainda tem de ser apreciada pelo pleno desse tribunal. Mormente porque Lewandowski havia dado uma interpretação conforme a Constituição ao Inciso XVIII do Artigo 29 da Lei 13.303, que é a lei das estatais, aprovada em 2016. Lá, de fato, está escrito:
"É dispensável a realização de licitação por empresas públicas e sociedades de economia mista (…) na compra e venda de ações, de títulos de crédito e de dívida e de bens que produzam ou comercializem".

Em sua decisão, Lewandowski sustenta que a venda de ações é coisa distinta da venda do controle da empresa — ou de toda a empresa. E é mesmo, concordam? Nesse caso, argumenta o ministro, é preciso que o Congresso aprove uma lei especifica que regule a venda, que tem de se dar por processo licitatório. Será mesmo assim? Já vamos ver.

Além da Lei 13.303, trata também do assunto o decreto presidencial 9.188. Os parágrafos 3º e 4º do Artigo 1º permitem a venda de ativos de estatais sem menção a percentuais ou permissão do Congresso. Mas existe a Constituição, que está acima de leis e decretos.

CONFUSÃO
E aí a confusão está instaurada — e vamos ver o que vai decidir o Supremo.

De fato, estabelece o Inciso III do Parágrafo 1º do Artigo 173 da Carta:
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre (…) licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;

O Inciso XXI do Artigo 37 define:
"XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações".

A SÍNTESE
1: a venda já foi realizada com base numa decisão obviamente torta do STJ, independentemente do mérito, que não poderia, sob nenhuma hipótese, contrariar uma liminar em vigência concedida por um ministro do STF;
2: a Constituição é explícita ao exigir uma lei quando se tratar da venda da empresa ou do seu controle. Com efeito, venda de ações é outra coisa;
3: se o que está na Constituição for cumprido, a venda será declarada sem efeito, e a questão terá de ser submetida ao Congresso. Se aprovada a lei, segue a vida, com abertura de processo licitatório;
4: em nome do interesse público, pode-se tomar uma decisão modulada, deixando as coisas como estão nesse caso e se exingo o cumprimento da Constituição em outros? Pode ser uma alternativa;
5: existe a possibilidade de o pleno cassar a liminar de Lewandowski e decidir que a autorização do Congresso, por meio de lei, é desnecessária? Possibilidade sempre existe, mas não sei sob quais argumentos;
6: sim, isso tudo causa insegurança jurídica. Mas, no caso, não se mire em Lewandowski ou em Fachin. O STJ não deveria ter feito o que fez.

E como fazer, dada a Constituição, para que a privatização não dependa mais de lei aprovada pelo Parlamento caso considerem ser esse um bom caminho? Ora, que se façam emendas mudando a Carta. Eu apoiaria uma emenda com esse teor? Resposta: não! Sou privatista. Mas o Poder Legislativo tem de participar.

Pode-se dizer que parte considerável das confusões no Brasil decorre das leis que temos. Mas também é verdade que parte considerável decorre do fato de não se cumprirem as leis que temos.

Ah, claro! Em nome de princípios liberais, você pode chegar à conclusão de que esse negócio de lei e Constituição só atrapalha. Certo? De quais dos seus direitos você está disposto a abrir mão para que o Brasil funcione melhor? Afinal, leis atrapalham…

Não, caros! Nas democracias, leis têm de ser mudadas, não ignoradas.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.