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Reinaldo Azevedo

Caso Neymar expõe era da barbárie judiciosa, que destrói também a política

Reinaldo Azevedo

03/06/2019 16h49

Neymar chora depois da desclassificação da Seleção Brasileira na Copa de 2018/Foto: Reuters

O caso Neymar, que, a esta altura, dispensa apresentação, causa em mim, confesso, um certo desconsolo. Traz alguns aspectos que remetem a um tema de que tenho tratado de maneira mais ou menos obsessiva neste blog, no meu programa de rádio, na minha coluna na Folha, onde quer que me manifeste. Vivemos a era da falência das mediações. Estamos experimentando o que eu ousaria chamar de "pesadelo democrático": todo mundo vota, todo mundo opina, todo mundo julga, todo mundo dá pitaco. Desapareceram os intermediários para operar os filtros.

Sim, a justiça ainda é acionada para isso ou aquilo; ainda se apela ao Estado para que aplique punições na esfera penal ou cível, mas o tribunal que realmente conta, aquele que decide destinos, que vai dizer quem vive ou quem morre, que há de decidir os vitoriosos e os derrotados, bem, esse tribunal é mesmo o das redes sociais.

Aqui abro parênteses: notem que a condenação e prisão de Lula, por exemplo, que já foi uma espécie de imperador da opinião pública, só se deu depois que se operou uma substituição, digamos assim, de heróis. Moro construiu antes a sua reputação de juiz incorruptível e que jamais cede às pressões. A prisão do ex-presidente ia se consolidando à medida que a sua reputação ia sendo esvaziada e a de seu julgador inflada. Quando cada uma atingiu seu ponto ótimo, o primeiro foi para a cadeia, e o segundo, para o ministério da Justiça. E com o vozerio na praça pública se encarregando de gritar: "Cortem-lhe a cabeça". "Moro, nosso salvador". No outro extremo, ouviu-se: "Golpe!"

Um dos serviços prestados por Yascha Mounk no livro "O Povo Contra a Democracia", recentemente publicado no Brasil, foi trazer à luz alguns fundamentos de "O Federalista", coletânea de 85 artigos escritos por James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, que ratificavam e explicavam os fundamentos da Constituição dos EUA.

O Artigo 10, provavelmente escrito por Madison, aborda os riscos do facciosismo para o funcionamento da República — ou, se quiserem, da Federação. Note-se que os textos fazem a distinção entre uma "democracia", entendida como expressão direta da vontade do povo e, pois, sujeita às facções, e o que se chama lá de "República" (que entendemos, hoje em dia, justamente por democracia). Escreve Madison que o poder das facções é contido por uma minoria que governa com a delegação do povo, cujas opiniões "são filtradas por uma assembleia escolhida de cidadãos, cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse do seu país e cujo patriotismo e amor à justiça serão menos propensos a sacrificá-lo a considerações temporárias ou parciais. Sob tal regulação, é bem possível que a voz pública, manifestada pelos representantes do povo, seja mais consoante com o bem público, que se manifesta pelo próprio povo, convocado para esse fim".

Madson adverte na sequência que a própria Assembleia — entenda-se: o Parlamento — pode ser tomada por facciosos. E atenta para a importância de haver um sistema de contrapesos que os impeça de prosperar. Não vou entrar nesses detalhes agora. O que me importa é outra coisa.

Na política ou em casos de espetacularização da vida privada, mas que apelam a questões públicas — como é caso Neymar —, vivemos o paroxismo do julgamento das facções, cujas vozes vêm à luz não com o filtro de uma assembleia, mas na sua crueza judiciosa e, às vezes, odienta.

Salta em meio à algaravia a voz de Neymar pai, a dizer que é preferível a acusação de violar regras de preservação da intimidade na Internet à suspeita de que seu filho seja um estuprador. Ou por outra: pouco importa a subordinação ou não aos ditames do Estado legal ou mesmo a hipótese de que Neymar, sendo quem é, tenha ultrapassado a linha do decoro. O Judiciário ou um código de ética, também derivados daquela Assembleia de que falava Madison, perde importância. Cumpre entrar na disputa das facções. E, ao fim de tudo, Neymar busca a sua absolvição nesse tribunal online, em que os grupos se engalfinham e se agridem, destruindo qualquer espaço civilizado de debate.

Acreditem: esse caso que envolve Neymar tem mais importância simbólica do que parece. A exemplo do que se tem visto na política — e se dá em detrimento dos interesses do país —, a irracionalidade judiciosa, ao arrepio de qualquer fundamento legal ou ponderação ética, se impõe.

É um mundo bárbaro.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.