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Reinaldo Azevedo

Freak Show: de menino genial a adulto adiado. Tite será segundo Neymar pai?

Reinaldo Azevedo

04/06/2019 05h27

Tentem encontrar um único comportamento já nem digo edificante, mas ao menos decente, nesse "freak show" em que se transformou o caso Neymar, muito típico desses dias, em que a vida se desenrola ao ritmo de escândalos, memes e correntes de ódio nas redes sociais. Sim, esse rapaz, pobre menino rico!, precisaria ter a idade que tem. Ou melhor: urge que ela nasça. Para tanto, Freud poderia sugerir que ele matasse a figura simbólica do pai.

O garanhão que nem precisa conquistar se não quiser — basta mandar comprar — é um emasculado no mundo das responsabilidades. Parece usar o seu notável talento, casado à agressividade empresarial do pai, para viver o mundo do eterno gozo, em que tudo lhe é permitido. Gente assim se torna também descuidada.

"VEM LOGO E ACABA COMIGO"
Estupro? Depois da suposta violência sexual que teria sofrido, em mensagens trocadas com aquele que diz agora ser seu agressor, a mulher escreve: "Traz vinho. Vinho rosé ou branco. Vem logo e acaba comigo". E ele foi ao segundo encontro, quando então teriam se desentendido. Haveria um vídeo a respeito.

Os dois mantiveram relações sexuais — forçadas, diz ela; consensuais, diz ele — no dia 15 de maio em Paris. Ela volta ao Brasil no dia 17, mas procura um médico — um gastroenterologista — só no dia 21. O doutor mistura estômago com psique e aponta "distúrbio estomacal, transtorno ansioso e depressivo e traumatismos superficiais não especificados". Apontou também "hematomas e arranhaduras nos glúteos, tipo digitais." Trata-se de um especialista em aparelho digestivo.

No dia 29, o advogado então constituído por aquela que se diz estuprada, José Edgard Bueno, mantém um encontro com os advogados de Neymar numa casa que o jogador tem em São Paulo. Segundo Neymar pai, tratava-se de uma tentativa de extorsão. Em troca de mensagens com a mulher, Bueno — que ela chama de "Zé" — confirma que tentou uma negociação. Não diz a natureza.

NEYMAR PAI E OS PRONOMES
Em entrevista à Band, afirma o pai do jogador, referindo-se à decisão de tornar pública a troca de mensagens do filho com a mulher:

"Imagina deixar uma acusação dessa, ver seu filho ser chamado de estuprador. Por isso, a decisão de que o Neymar se expusesse. Preservamos a imagem da menina, o nome, fizemos o possível. Mas era uma defesa. Não cometemos crime. Não tínhamos escolha. Prefiro um crime de internet do que um de estupro. Era uma defesa, e ele precisava se defender rapidamente. Melhor ser verdadeiro e mostrar o que realmente aconteceu".

Observem a confusão de pronomes. "Preservamos a imagem da menina", diz ele. Até aí, vá lá: o jogador é uma marca, é uma empresa. E o chefe, desde sempre, é o pai. Mas quando este diz "não cometemos nenhum crime", a negação avança para o terreno do surrealismo. Uma coisa é ele confiar no filho e se comportar como o representante da, vá lá, "marca" Neymar. Mas deve ser a primeira vez que uma acusação de estupro é contestada por uma espécie de pessoa jurídica. Ao se referir à decisão de divulgar a troca de mensagens, Neymar pai volta para a primeira pessoa do singular: "Prefiro um crime de Internet…" Neymar Júnior é a extensão mais rentável do Neymar Sênior.

O EX-ADVOGADO DE DEFESA E OS PRONOMES
E há a estranha decisão — e estranha é, não tem jeito — do advogado que tentou um "acordo" em nome da mulher no dia 29. Liberou para o "Jornal Nacional" uma carta que se tornou peça fundamental para a defesa do jogador. Por intermédio do documento, Bueno anuncia que está deixando o caso e escreve:

"No dia 31 de maio de 2019, a senhora registrou um boletim de ocorrência no qual capitulou o fato ocorrido como estupro, ou seja, alegação totalmente dissociada dos fatos descritos por você aos nossos sócios, já que sempre afirmou que a relação mantida com o Neymar Júnior foi consensual, mas que durante o ato ele havia se tornado uma pessoa violenta agredindo-a, sendo esse o fato típico central (agressão) pelo qual ele deveria ser responsabilizado civil e criminalmente (…) Por raiva ou vingança, vossa senhoria relatou no boletim de ocorrência registrado em 31 de maio de 2019 fatos descritos em desacordo com a realidade manifestada aos seus patronos, ou seja, compareceu à delegacia relatando que teria sido vítima de estupro quando, na realidade que nos foi demonstrada e ratificada por várias vezes, vossa senhoria teria sido vítima de agressões".

Também aí, os pronomes e tratamento se confundem: "você", "senhora", "vossa senhoria". A defesa de Neymar saberá trabalhar. Até porque há estupros que não deixam marcas, e há relações consensuais que deixam. Estupro é crime. Sexo acompanhado de violência, se consensual, não.

O advogado poderia ter renunciado ao caso. Acontece a todo momento. A exposição, no entanto, da conversa privada com o cliente, mesmo em caso de rompimento, é um troço absolutamente exótico. Mais do que os diálogos malandrinhos de Neymar com a tal mulher, essa manifestação da defesa anteriormente constituída pela denunciante fragiliza a acusação de estupro. Será preciso apelar a muita licença poética judicial para Neymar ser condenado.

"Vem logo e acaba comigo" como convite para um segundo encontro e uma reunião para uma negociação extrajudicial antes da denúncia não parecem eventos compatíveis com uma vivência de estupro. Mas isso decidirá a Justiça.

OPINIÃO PÚBLICA
Marcar o tal encontro foi a pior ideia que Neymar Jr. teve em sua carreira. Ainda que o futebol seja um negócio privado — e privada é também a CBF —, não há como: está embutida na profissão a ideia da representação. Ou as cores de um time representam os seus torcedores ou, mais amplamente, as de um selecionado projetam esperanças de parte considerável de um povo. Em exagero genialmente típico, Nelson Rodrigues falou na "pátria de chuteiras".

Neymar entregou mais resultados até agora, fruto de seu talento, à empresa familiar do que à brasileirada que torce. A minha impressão — e a palavra que vai contar é a da Justiça — é a de que é inocente do crime de estupro. Mas já chegou a hora de responsabilizar moralmente o homem Neymar pelas besteiras que faz dentro e fora de campo.

O soco que deu num torcedor do Rennes deveria ter bastado para Tite mantê-lo longe da Seleção. Ocorre que o círculo de ambições e interesses que aprisionam esse rapaz o impede de crescer. Ele já foi um garoto genial. A cada dia que passa, é só um adulto de maturidade sempre retardada. E isso ajuda a explicar que se tenha deixado enredar nessa história.

Acho que ganhará a causa na Justiça. Mas já perdeu.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.