Não há nenhum dilema ético na publicação. “The Intercept Brasil” não é juiz
Não há nenhum grande dilema ético — nem pequeno — na publicação da troca de mensagens entre membros da Lava Jato e destes com o então juiz Sérgio Moro. "The Intercept Brasil" é um site jornalístico e está com informações preciosas nas mãos. Primeira pergunta: trazê-las à luz é de interesse público? Resposta: sim! Um hacker invadiu as contas de Moro e dos procuradores? Que se investigue. Que se saiba, os invasores não pertencem ao site. Segunda pergunta: ainda que as informações tenham origem em invasões, isso é diferente dos vazamentos sistematicamente praticados pela Lava Jato? Um servidor que torna pública uma informação considerada sigilosa pela Justiça também agride a ordem legal.
Em terceiro lugar, mas não menos importante, use-se para esse caso o fundamento explicitado em rede nacional de televisão por Sérgio Moro quando indagado por Pedro Bial, no programa "Conversa com Bial", sobre a decisão do então juiz, que divulgou uma conversa gravada ilegalmente entre Dilma Rousseff e Lula. Respondeu o agora ministro da Justiça:
"O problema ali não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo; o problema era o diálogo em si".
E, certamente, moristas e bolsonaristas concordaram com Moro. E olhem que hacker não é juiz. O papel que o hacker se impôs é justamente o de quebrar códigos, incluindo os da legalidade. Se cai nas malhas da Justiça, tem de arcar com o peso de sua escolha. No caso de Moro é diferente: o seu papel, então, era aplicar a Justiça. E, de forma consciente e deliberada, ele divulgou o tal "diálogo" sabendo que estava cometendo uma ilegalidade.
Chega a ser pornográfico que Moro insista que nada havia de mais na sua parceria com Deltan Dallagnol. Os dois conversam sobre a divulgação do diálogo entre a então presidente e seu antecessor, embora a dupla soubesse tratar-se de uma ilegalidade. O vazamento foi decidido depois que Dilma anunciou a intenção de nomear Lula seu chefe da Casa Civil. No começo da tarde, Dallagnol pergunta a Moro: "A decisão de abrir [a conversa] está mantida, mesmo com a nomeação, confirma?" Ao que responde o juiz: "Qual é a posição do MPF?" E se lê como resposta: "abrir".
Ora, aquela conversa tinha sido captada depois que já havia expirado o prazo legal para o grampo. Mais: como uma das personagens era a presidente da República, a divulgação só poderia ter sido feita com a autorização do Supremo. Seis dias depois, Moro escreveu para Dallagnol: "Não me arrependo do levantamento do sigilo. Era a melhor decisão. Mas a reação está ruim".
Se o órgão jornalístico dispõe da informação, deve publicá-la. Se invasão de privacidade é crime, vazamento também é. Mas não foi cometido pela imprensa — embora esta deva sempre tomar o devido cuidado para não ser instrumento de criminosos. Ainda assim, que se note: hackers não têm o dever de seguir as normas legais. Mas um juiz a tanto está obrigado. Entre a invasão praticada pelos hackers — na hipótese de isso ter acontecido — e um grampo ilegal envolvendo a Presidência da República, a diferença é apenas de grau: o ato de Moro foi muito mais grave do que o dos hackers, não? Nos EUA, ele iria para a cadeia. E, como sabemos, em matéria de ordem legal, o "americanófilo" é ele, não eu.
Há ainda aqueles que tentam comprar a versão espalhada pelo próprio Moro, segundo a qual as conversas não têm nada de excepcional. Afinal, seria normal um juiz conversar com o Ministério Público e com advogados de defesa. Conversa, devidamente agendada, é normal. Coordenar ações não é. Já imaginaram ministros do Supremo a combinar procedimentos com a defesa de Lula que pudessem resultar, por exemplo, na sua soltura? Há quem defenda a invasão do Supremo só porque ministros concedem habeas corpus.
Com a devida vênia, afirmar que Moro e Dallagnol nada fizeram de errado vai um pouco além da simples opinião. É falta de vergonha na cara mesmo. Quer um caminho seguro, leitor amigo? Eu lhe ofereço uma alternativa: na democracia, é o cumprimento da lei. Se você a considerar ruim, defenda que seja mudada. O que não se deve fazer, especialmente quando se é juiz, é atropelá-la de forma deliberada.