Moro “se dá bem” no diversionismo; e o absurdo diálogo com Flávio Bolsonaro
Se a gente ignorar o tratamento que o ministro Sergio Moro dispensa à língua portuguesa — ele insiste, por exemplo, em que a primeira pessoa do futuro do subjuntivo do verbo "ver" também é "ver", não "vir" —, pode-se dizer que seu desempenho cênico na Comissão de Constituição e Justiça do Senado é bom. Entenda-se: é "bom" para ele. O homem sempre foi muito competente na arte de convencer terceiros de que é competente. E sempre foi muito sério e dedicado no trabalho de levar os outros a concluir que ele é sério e dedicado. Essas pessoas existem. Moro é uma delas. Com ele, o Brasil pode ir para o abismo com uma aparência digna. Vejam o que aconteceu com a Odebrecht, por exemplo. No mundo inteiro, empresas são flagradas cometendo falcatruas. Pagam multas. Seus controladores são punidos. As companhias ficam de pé, gerando empregos. Por aqui, a maior construtora do país e suas congêneres quebraram. Obra do jeito Moro de ser sério e competente. Voltemos ao Senado.
"PROJETO VENCEDOR"
Das muitas intervenções, fixo-me em uma, que é simbólica: a pergunta feita pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), aquele que é um dos protagonistas do incrível caso Fabrício Queiroz, que, como notam, parece não sair do lugar. O senador abriu a sua intervenção afirmando que o ministro fazia parte de um "projeto vencedor" — ele se referia, claro!, à vitória nas urnas de Jair Bolsonaro, de quem Moro é subordinado. Não é incrível?
Moro só estava sentado naquela cadeira porque há evidências, entre outras coisas, de que conduziu, ao arrepio da lei, o processo que resultou na condenação de Lula, o que impediu o petista de disputar a eleição com Bolsonaro, titular, então, do que Flávio chama "projeto vencedor". Não é demais? O "projeto vencedor" de que o ministro Moro é, então, parte só é vencedor porque, afinal, o juiz Moro era parte do… projeto. E isso é dito assim, sem constrangimento, como uma língua negra a correr a teto aberto, debaixo da concha do Senado Federal da República. Nem a oposição se deu conta.
AGENTE RUSSO
Na sequência, Flávio navegou numa teoria conspiratória que circula na Internet, segundo a qual Glenn Greenwald contratou um hacker, numa tramoia que passaria pela Rússia. Ouvimos ali um trechinho dos delírios que circulam nas redes bolsonaristas. Moro anda com rasgos explícitos de populismo, mas conserva certo senso de ridículo e não deu muita trela à hipótese. Esconde-se na posição confortável de quem, a um só tempo, insiste em que os diálogos divulgados nada têm de ilegal, colocando em dúvida, no entanto, a sua veracidade. Inexiste esse lugar lógico inventado por Moro. E daí?
Em sua pergunta, Flávio lembrou que esteve presente ao encontro em que Bolsonaro convidou Moro para ser seu ministro, asseverando que isso se deu só depois da eleição. A resposta do ministro ao primeiro e enrolado filho presidencial trilha a rota do surrealismo explícito. E, de certo modo, sintetiza o que foi a audiência.
DAS NEGATIVAS
Moro voltou a negar a afirmação feita pelo próprio presidente, segundo quem, no dia do convite, prometeu ao então juiz e agora ministro que seria sua a próxima vaga a abrir no Supremo. Na revelação de Bolsonaro, o que se tinha era a reinterpretação do fisiologismo: a prática abraçava também o Poder Judiciário, capturando, assim, a sua corte máxima. Sim, o próprio presidente retirou mais tarde a sua fala.
O ministro, em todo caso, aproveitou a oportunidade para, mais uma vez, negar que a troca tivesse sido proposta por Bolsonaro. Mas foi além: resolveu contestar o próprio Flávio. Há tempos, o senador havia afirmado — o que é fato, revelado com exclusividade por este blog — que, por ocasião do convite, Moro exigiu que Bolsonaro lhe desse o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Sem nem saber do que falava o então juiz, o presidente eleito cedeu. Pois acreditem: na resposta dada ao senador, Moro negou também que isso tivesse acontecido.
Sim, senhores! Ali, na cara de Flávio, que ficou em silêncio, o ministro desmentia um Bolsonaro pela segunda vez. E Flávio ficou calado, sabendo, no entanto, que o episódio negado por Moro aconteceu, sim. E como o titular da Justiça tratou, então, a afirmação pública de Flávio segundo a qual ele havia exigido o Coaf? Tudo teria sido o que classificou de "golpe de memória". E assim Moro foi "se dando bem" no depoimento prestado à CCJ do Senado.
Por que tomo a conversa com Flávio como um emblema da passagem do ministro pela comissão? Porque esta foi a expressão da chamada pós-verdade. Os fatos perdem importância em favor da versão, vamos dizer, convincente. O ministro desmentia seu chefe pela segunda vez e chamava, ainda que com palavras lisonjeiras, de mentiroso um interlocutor e aliado — que, no caso em questão, havia falado a verdade: Moro exigiu, sim, o Coaf.
NATURALIZANDO A ILEGALIDADE
Da mesma sorte, nas suas respostas, tanto naturalizava os seus diálogos absurdos com Deltan Dallagnol, que não teriam nada de mais, como os colocava em dúvida porque, disse, podem ter sido fraudados. E, tudo o mais constante e não havendo sortilégios ainda mais cabeludos, então se dirá que Moro teve um bom desempenho e passou pelo teste de fogo de uma CCJ, com a devida vênia, despreparada para enfrentar uma figura que se construiu como paladino da justiça. Não se perguntou a ele com a devida clareza:
1: se é normal um juiz apresentar ao acusador testemunhas contra o réu;
2: se é normal um juiz incentivar um procedimento ilegal para fazer essa testemunha falar;
3: se é normal um juiz condescender com um truque midiático — que resultou no PowerPoint — para compensar a fraqueza de provas;
4: se é normal um juiz interferir na escolha de um membro do Ministério Público escalado para participar das audiências;
5: se é normal um juiz combinar com o Ministério Público como será a desqualificação pública da defesa de um réu.
O SUPREMO
O crivo final para tais práticas, como sabemos, será o Supremo. Se tudo o que vai acima, revelado de forma inequívoca nos diálogos entre Moro e Dallagnol, for aceito pelo tribunal, então a Lava Jato, de que Moro ainda é o real coordenador, terá dado uma contribuição que realmente colocará o país num novo rumo: o da destruição do devido processo legal.
Digam-me uma única boa razão para que outros juízes e outros procuradores ou promotores não sigam a mesma trilha. Tudo dependerá, claro!, da moralidade pessoal de cada um. Ou por outra: teremos um direito penal que não mais dependerá do que está das leis, mas do arbítrio dos agentes do Estado.
E assim se dá com a cumplicidade de uma parcela da imprensa e de políticos como este incrível senador Álvaro Dias (Podemos-PR), segundo quem os diálogos revelados pelo The Intercept Brasil merecem ser saudados porque revelariam o comportamento diligente de juiz e procuradores.
Suponho que Dias só mudará de ideia no dia em que ele próprio for alvo dos métodos que agora aplaude.
O abismo a que chegamos não se fez em um dia. E dele não sairemos com facilidade.