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Reinaldo Azevedo

Combatamos, sim, a corrupção. Mas essa não é tarefa para novos criminosos

Reinaldo Azevedo

21/06/2019 07h03

Não há bem que a Lava Jato tenha feito ao Brasil — e combater a corrupção é, em si, uma iniciativa boa e necessária — que compense a falsa consciência que ameaçou se generalizar no país de que o cumprimento da ordem legal é mera trapaça dos poderosos para enganar a população. Essa visão de mundo, felizmente, está em refluxo, mas ainda é poderosa. E é grande o número de políticos, a começar do presidente da República, que surfam nessa onda. Bolsonaro, não custa registrar, acha que injustas são apenas as investigações que colhem Flávio (PSL-RJ), o filho senador. Ou por outra: na cabeça do presidente, os adversários serão sempre culpados, ainda que se prove sua inocência, e os aliados serão sempre inocentes, ainda que se prove a sua culpa.

Mais do que surfar na onda, é preciso considerar, Bolsonaro é parte dela e foi eleito por ela. A Lava Jato promoveu uma razia na política e demonizou tanto os métodos escusos que eram usados por empresários e políticos para se apoderar de fatias do Estado como a política propriamente, sem a qual se obstruem a representação e os canais institucionais que fazem chegar as demandas populares aos órgãos do Estado. Nos diálogos publicados pelo site "The Intercept Brasil", num dado momento, Deltan Dallagnol, o Robespierre de meia-tigela da operação, afirma sobre doações eleitorais: "Doação sem vinculação a contrato, para influência futura, é aquilo em que consiste TODA doação eleitoral"

PARTICIPAÇÃO LEGÍTIMA
Entenderam? Embora a legislação permitisse a doação de empresas a campanhas eleitorais, o coordenador da Força Tarefa via em tal prática apenas um crime adiado. Afinal, para caracterizar a corrupção passiva, forçoso é que haja uma relação de troca. Mesmo que esta não esteja dada, Dallagnol vê em tal inciativa a busca de uma "influência futura" e, pois, um mal adiado.

Empresas participam de eleições em todo o mundo democrático; o que varia é a forma de doação. Em boas democracias do mundo, há a legalização do lobby, de modo que ninguém precisa esconder interesses legítimos em práticas que são vistas como ilegítimas pelo moralismo estúpido. O que há de errado em que sindicatos de empresários, de trabalhadores, de servidores, escolham aí, apresentem as suas demandas? Nada.

O MAU EXEMPLO DA ITÁLIA
Não, senhores! A Lava Jato não perseguiu apenas aqueles que acertaram sobrepreço em obras públicas para pagar propina. Criminalizou a própria conversa, de sorte que, a exemplo do que quer Dallagnol, toda doação sempre foi, desde a origem, apenas um manto para cobrir a corrupção. E foi assim que, sob o pretexto de se caçarem e se cassarem os corruptos, acabaram por caçar e cassar a própria política.

É claro que já se viu isso antes no mundo. O exemplo mais próximo, com efeito, é a Itália, que não é hoje, exatamente, um modelo a ser seguido na Europa rica. Muito ao contrário. Anotem aí: caminha para uma crise de grandes proporções. E não porque aquele governo que junta a esquerda circense com a extrema-direita é, por si, uma pantomima, mas porque a elite política foi dizimada pela Operação Mãos Limpas. E o país não é hoje nem sombra do que estava destinado a ser. Os interlocutores desapareceram. A única coisa que voltou a crescer é a máfia — em nova configuração: fracionada e repaginada, a financiar políticos, como sempre.

CAMINHO PARA AUTOCRATAS
O que há de curioso nessas cruzadas cegas? Sob o pretexto de combater a corrupção e as corporações, iniciativas como as operações Mãos Limpas e Lava Jato acabam criando o caldo de cultura para os candidatos a autocratas. Foi assim com Silvio Berlusconi e quase tudo o que veio depois na Itália; é assim com Bolsonaro no Brasil. Ou por outra: considera-se, então, que o governante que se ancora numa coalizão para governar estará necessariamente praticando corrupção, mas aquele que se apresenta para tomar decisões ao arrepio de qualquer tentativa de entendimento ou consenso estaria, então, agindo em nome dos interesses celestes.

É claro que se trata, essencialmente, de uma agressão à democracia. E, por óbvio, quem está imbuído desse espírito missionário não dá bola para os limites legais, como a Lava Jato não deu. Se o combate à corrupção justifica qualquer ação, passa a justificar também a agressão à ordem legal, que costuma ser chamada de crime. E já está mais do que claro que crimes foram cometidos no Brasil sob o pretexto de combater o crime. Ocorre que crimes cometidos por homens e entes do Estado serão sempre mais graves do que aqueles cometidos por indivíduos e empresas que compõem a sociedade.

Combatamos a corrupção. Mas essa não é tarefa para criminosos.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.