O erro de general Heleno: Batman não combate Coringa; é seu inimigo íntimo
Augusto Heleno, ministro do Gabinete da Segurança Institucional, lê o blog de vez em quando. Também ouve, volta e meia, o meu programa. Ele resolveu fazer uma réplica a uma metáfora que usei aqui. Mas é provável que não a tenha entendido. Ou, então, pode ser que tenhamos noções distintas do que seja democracia. A minha não tem nada de exótico ou estranho. Está assentada na vontade do povo, mas se consubstancia na ordem legal e no estado de direito. Não sei se o general aderiu a alguma heterodoxia.
Numa palestra a empresários nesta segunda, em Belo Horizonte, ele afirmou o seguinte sobre Sergio Moro:
"Um homem desses ser colocado na parede por gente que tem pavor dele? O cara, quando ouve falar em Moro, quer morrer, né? Aquilo ali é o símbolo do Batman contra o Coringa. E os caras querem ver o Batman na parede. E começam a inventar que a conversa dele com o procurador é ilegal. Um juiz não pode conversar com um procurador, mas muitos podem conversar com o advogado de defesa, receber em casa para jantar".
Vamos ver. Associei aqui na manhã de domingo, dia 7, Moro a Batman e Deltan Dallagnol a Robin. E o fiz em tom crítico, sim. A razão é simples: no estado de direito, não existem justiceiros. Isso é para história em quadrinhos e ficção, general! Para começo de conversa, na democracia, com o estado organizado, quem combate o Coringa são a Polícia e o órgão acusador, não o juiz. Este vai julgá-lo.
Pode parecer estranho a ouvidos pouco treinados na ordem democrática, mas a função de um juiz não é combater a corrupção, mas aplicar a lei. O ataque aos corruptos é decorrência da correta aplicação dos códigos. Se estes forem insuficientes, têm de ser mudados.
Eu não sei quem tem medo de Moro, como diz o general. Eu, por exemplo, não tenho. Ou será que faço mal em não tê-lo mesmo sem ter cometido crime? É bem verdade que, até agora, não se sabe se o jornalista Glenn Greenwald é investigado ou não pela Polícia Federal, subordinada a Moro.
A associação que fiz entre Moro-Dallagnol e a "Dupla Dinâmica" não era elogiosa, não. Era crítica. A minha democracia, que é a democracia como a entendem os bons especialistas do mundo, não convive com ações extralegais, ainda que sob o pretexto de fazer "o bem", a exemplo de Batman e seu "Garoto Prodígio". Ademais, o justiceiro só faz sentido porque, em Gotham City, todos os homens de Estado, incluindo juízes, governantes e policiais, são essencialmente corruptos, ressalvando-se exceções.
O general Heleno vem operando algumas notas fora do tom já há algum tempo. Não é prudente a alguém que responde pela segurança institucional atuar assim. Juiz pode conversar com procurador, sim, general. Pode até jantar com ele. Ou com o advogado de defesa — como o senhor afirmou ter acontecido sabe-se lá com que magistrado. O que o juiz não pode, porque o Código de Processo Penal não permite, é atuar como o chefe da acusação. E é claro que o general sabe disso.
O que o juiz não pode, general, é, de forma deliberada, orientar o coordenador formal da força tarefa a desrespeitar uma decisão de ministro do Supremo. Segundo os diálogos revelados por reportagens da Folha e do site The Intercept Brasil, Moro mobilizou Dallagnol para quebrar o sigilo das delações da Odebrecht que diziam respeito à Venezuela. Elas estavam sob sigilo, conforme decisão do ministro Edson Fachin. E o sigilo foi quebrado, ignorando acordo, lei e decisão do STF.
O Coringa do Brasil, general Heleno, são aqueles que rasgam a Constituição e a ordem legal.
A propósito de justiceiros: nos quartéis, valem a hierarquia e os códigos, ou cada soldado pode tentar dar uma de Batman e combater os que considera seu Coringa, ao arrepio do comando?
Eu sei a resposta. E o senhor também sabe. A propósito, general: nas Forças Armadas, qual seria o destino de alguém que atuasse como Moro e Dallagnol?
ASSISTA AO FILME, GENERAL
Sugiro ao general que reveja "Batman, O Cavaleiro das Trevas", com a espetacular interpretação que Heath Ledger deu ao Coringa. É a melhor representação da personagem. É o filme que trata o bandido com mais propriedade e profundidade. Trata-se de um misto de psicopata com existencialista violento. Ele é um esteta do crime.
Coringa deixa claro que ele próprio e Batman são dois marginais da ordem legal.
Eu poderia me estender mais aqui, general, mas acho que o senhor já compreendeu. Nas democracias ou nas Forças Armadas, não pode haver lugar para marginais — para os que atuam à margem da ordem, seja para praticar o mal, seja em nome do bem.
O senhor está errado no entendimento da narrativa, general: Batman não combate o Coringa. Ele depende do Coringa para ser Batman.
Nas democracias de direito, não há lugar nem para um nem para outro.
Reveja o filme, general. Reflita.