Bolsonaro cometeu crime comum e de responsabilidade. Por qual será deposto?
"Desses governadores de Paraíba, o pior é o do Maranhão. Não tem que ter nada para esse cara".
Como sabem, essa é a parte compreensível de uma recomendação que o ainda presidente Jair Bolsonaro deu a seu ainda chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, na sexta, segundos antes de ter início uma entrevista coletiva à imprensa estrangeira, quando novos territórios da indignidade foram devassados. Cometeu dois crimes que deveriam resultar, por caminhos diversos, na perda do mandato: crime de responsabilidade (Lei 1.079, a do impeachment) e crime comum: discriminação em razão de procedência nacional (Lei 7.716). Quem tem a coragem de não se acovardar?
Uma explicação, creio, desnecessária, mas que fique o registro. Na fala de Bolsonaro, "Paraíba" não é a terra de João Pessoa, de Ariano Suassuna (antípodas, na origem) ou de Augusto dos Anjos. A palavra, carregada de ódio e preconceito, designa o que conhecemos como "Região Nordeste", onde viviam, em números do ano passado, 56.760.780 pessoas, segundo dados do IBGE — para um total de 208.494.900 em todo o país. Na "Paraíba" inventada pelo presidente, estão 27,22% dos brasileiros. E o "cara" que deve ficar sem pão e água é Flávio Dino (PC do B), que governa as terras maranhenses da "Região Paraibana".
Para registro: no universo eleitoral em que disputou, o Maranhão, Dino obteve uma vitória muito mais robusta do que Bolsonaro no Brasil: elegeu-se no primeiro turno com 59,29% dos votos válidos.
Cumpre indagar: até quando a ordem legal vai tolerar os seus insultos?
CRIME DE RESPONSABILIDADE
Qualquer do povo pode apresentar à Câmara denúncia contra o presidente da República por crime de responsabilidade. Mas é claro que a iniciativa teria mais peso se contasse com o apoio de parlamentares dos vários sotaques que formam "A Grande Paraíba", em associação com juristas oriundos da mesma região.
Não que só eles tenham legitimidade para isso. Mas o homem ou a mulher que não se apresentam para defender o rio de sua aldeia não podem saber a beleza do Tejo. Quem não preza a dignidade de seu torrão não tem sentido de pátria, não é mesmo?
Quem tem a coragem de não se acovardar?
Cabe a denúncia por crime de responsabilidade? Cabe, sim! O dispositivo legal está na mesma lei a que apelou a agora deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) para apresentar a denúncia contra a então presidente Dilma Rousseff. A propósito, pergunto à parlamentar: "Encara mais essa, excelência?" Pedalar nas contas públicas certamente não é pior do que a determinação de Bolsonaro.
Define o Artigo 4º da Lei 1.079.
São crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente contra:
II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;
IV – A segurança interna do país:
V – A probidade na administração;
VI – A lei orçamentária;
VII – A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos.
O Artigo 85 da Constituição de 1988 repete, com uma alteração ligeira e irrelevante, esse trecho da Lei 1.079, que é de 1950.
A determinação do presidente é clara. "Não tem de ter nada" para "o cara" que governa a área maranhense de Paraíba. Dispenso-me de explicar por que a ordem viola os incisos II, IV, V, VI e VII do Artigo 4º da Lei do Impeachment.
E se pode ser preciso na tipificação da conduta criminosa. Define o Item 2 do Artigo 6º:
"São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados (…) usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção".
DESTINO DA DENÚNCIA
Denúncia por crime de responsabilidade começa a tramitar na Câmara. O primeiro ato soberano é do presidente da Casa. Pode mandar arquivá-la sem qualquer outro exame ou pode dar sequência, constituindo uma comissão para examiná-la. O mais provável é que Maia mandasse a coisa para o arquivo, o que seria compreensível, para evitar turbulência em momento tão delicado. Ainda que prosperasse, inexistiriam hoje os dois terços da Câmara para aprovar a petição, o que levaria, se existissem, o caso para o Senado. Instaurado o processo nessa Casa, Bolsonaro seria afastado (Inciso II do Parágrafo 1º do Artigo 86 da Constituição).
Eu não estou dizendo, como veem, que considero possível o impeachment. Eu estou cobrando é que se faça o registro histórico de que um crime de responsabilidade foi cometido — muito mais grave do que a pedalada da Dilma. E, como se sabe, não é a primeira vez que o mandatário é alcançado pelo que dispõe a Lei 1.079. Bolsonaro já é o presidente da República que mais crimes de responsabilidade cometeu.
CRIME COMUM
Há um outro caminho que poderia resultar na deposição de Bolsonaro caso se cumprisse a lei: o presidente cometeu crime comum, violando a Lei 7.716, conhecida por "Lei do racismo". Dispõe o Artigo 1º:
"Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional."
Só para lembrar: o Supremo já formou maioria, e estão sujeitos às mesmas sanções os que praticarem discriminação ou preconceito em razão de "gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero".
EXPLIQUEMOS "A PARAÍBA" DE BOLSONARO
"Paraíba" é o termo preconceituoso empregado no Rio para se referir aos nordestinos imigrados. O sinônimo, em São Paulo, é "baiano". A pessoa tem hábitos considerados pouco polidos ou inadequados? "Coisa de paraíba!" Veste-se mal ou exagera nos adereços? "Ficou baiano". Em certos círculos, ouve-se à larga: "O que estraga o Rio são esses paraíbas", assim como "os baianos" prejudicariam São Paulo.
Temos um presidente da República que açula o preconceito em vez de combatê-lo; que se refere de forma depreciativa a mais de um quarto da população brasileira; que nem mesmo se dá o trabalho de, desprezando a todos, ao menos reconhecer suas diferenças. Não! É tudo "paraíba".
TRÂMITE DO CRIME COMUM
Além de crime de responsabilidade, Bolsonaro cometeu crime comum: discriminação de origem. Nesse caso, quem tem de oferecer a denúncia é a Procuradoria-Geral da República. E qual é o trâmite?
O Supremo apenas recebe a denúncia do procurador-geral, sem qualquer exame, e a encaminha à Câmara. Também nesse caso é preciso que dois terços dos deputados apoiem a abertura do processo. Caso a recusem, recusada está, e se põe um ponto final.
Se a Câmara der aval, a questão volta para o tribunal. E só então o Supremo fará um juízo de admissibilidade. Se a maioria recusar, arquiva-se a denúncia. Caso seja aceita, está aberto o processo, e o presidente tem de se afastar. Nesse caso, quem julga é o próprio STF, não o Senado.
Será que a PGR apresentará a denúncia? Acho que não. Se apresentasse, haveria os dois terços na Câmara para autorizar o STF a abrir o processo? Já sabemos que não.
Mas entendo ser um dever da PGR fazê-lo: em nome dos quase 57 milhões de "paraíbas" que moram na Grande Paraíba e de muitos outros milhões espalhados Brasil afora.
SIMBOLISMOS E HISTÓRIA
Não sou tolo e sei que um e outro caminhos para Bolsonaro deixar a Presidência, hoje, seriam inviáveis. Não tem importância. É preciso deixar uma cicatriz na história da democracia brasileira para marcar o repúdio à estupidez, à boçalidade, à discriminação, ao preconceito e, bem…, ao crime.
"Ah, mas ele só falou…"
Segundo o Artigo 2º da Lei 1.079, "os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo". Uma ordem para punir a porção maranhense da Paraíba caracteriza, por si, uma tentativa.
NÃO SE TRATA DE DERRUBAR BOLSONARO. TRATA-SE DE EVIDENCIAR QUE NÃO PERDEMOS A VERGONHA NA CARA — AO MENOS, CLARO!, OS QUE AINDA NÃO A PERDEMOS.
A propósito: o barulhento Modesto Carvalhosa, que vive por aí a pedir a cabeça de ministros do Supremo, não se interessa por um presidente da República que manda punir "um paraíba"?
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CORREÇÃO
Na primeira versão do texto, troquei o nome do paraibano João Pessoa pelo do pernambucano Joaquim Nabuco. Embora Bolsonaro possa dizer que todos são "de Paraíba", faz-se necessária, por óbvio, a correção da bobagem. Não! Eu não confundi as personagens. Tanto que chamo a atenção para o fato de que a família de Ariano Suassuna era adversária de João Pessoa. Aí o capeta resolveu contribuir com o texto, e a troca aconteceu.