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Reinaldo Azevedo

Bolsonaro conseguiu ser asqueroso até para os padrões de... Bolsonaro!

Reinaldo Azevedo

29/07/2019 17h01

 

Charge de Amarildo retrata tortura no pau de arara

O presidente Jair Bolsonaro vai colecionando crimes de responsabilidade: uns mais asquerosos, outros menos, mas crimes em qualquer caso. Desta vez, parece ter ido além da conta. Mas tenho o temor de que sejamos obrigados a escrever rotineiramente um "desta vez, ele foi além de conta", de sorte que as agressões não apenas à lei, mas ao próprio processo civilizatório passem a ser uma rotina entre nós. Vamos ver: ainda que de modo oblíquo, Bolsonaro disse conhecer a autoria de um assassinato ocorrido durante a ditadura, deu um jeito de transformar a vítima em vilã e ainda fez pouco caso de seus familiares. É crime de responsabilidade. Já chego lá.

Qual é o ponto? A Polícia Federal já virou do avesso a vida de Adélio Bispo de Oliveira, o homem que deu uma facada em Bolsonaro. A despeito do que reza a versão triunfante nas milícias virtuais bolsonaristas, inexiste evidência de que Adélio tivesse alguma vinculação política que estivesse na origem do ato que, convenha-se, acabou por eleger o dito "Mito". A Justiça concluiu que o homem é inimputável, e ele está recolhido ao manicômio judiciário, sem prazo para sair de lá. Bolsonaro poderia ter recorrido da sentença e não o fez.

Bolsonaro alimenta a farsa de que foi vítima de um complô das esquerdas para matá-lo. Note-se que, ao insistir nessa bobagem, trata com desprezo a investigação da própria PF, como se também esta pertencesse à conspiração. E é nesse contexto que afirmou a seguinte boçalidade:
"Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro".

Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da OAB, é filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, que era, de fato, militante da Ação Popular. Não há evidência de que participasse de ações armadas. Tinha emprego e trabalho regular e não estava na clandestinidade. Desapareceu no dia 22 de fevereiro de 1974. O livro-relatório "Direito à Verdade e à Justiça" informa que um documento de 1978 do próprio Ministério da Aeronáutica informa seu desaparecimento. Segundo testemunhos de perseguidos políticos, ele foi morto nas dependências do DOI-CODI, no Rio. Felipe tinha apenas dois anos.

Em 2011, em palestra da Universidade Federal Fluminense, o então deputado Bolsonaro afirmou que Fernando havia morrido bêbado, depois de pular o Carnaval. À frente, então, da OAB-RJ, Felipe entrou com uma ação no Supremo pedindo a cassação do seu mandato por "apologia à tortura". Como se nota, a coisa, infelizmente, não prosperou. Outro esclarecimento.

Por que o ataque ao presidente da OAB? A 3ª Vara da Subseção Judiciária de Juiz de Fora (MG) havia autorizado, num caso escandaloso de agressão à lei, a quebra do sigilo bancário de Zanone Manuel de Oliveira Júnior, advogado de Adélio. O Conselho Federal da OAB e a Seção Minas da Ordem realmente recorreram à Justiça contra o disparate. A razão é simples: Oliveira Júnior não era um investigado. E o Tribunal Regional Federal da 1ª Região suspendeu a medida.

Isso nada tem a ver com Adélio, Bolsonaro ou com o presidente da OAB. Imaginem: caso a prática se generalizasse, todo advogado passaria a ser um investigado junto com o seu cliente, ainda que não houvesse nenhuma evidência de crime. Assim, todos os penalistas do país teriam uma condição permanente: investigados pela polícia. O bolsonarismo espalhou a mentira de que a OAB se opôs à quebra de sigilos de Adélio, o que é mentira.

Bolsonaro comete mais um crime de responsabilidade: infringe o Item 7 do Capítulo V da Lei 1.079. "Procede de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" de presidente da República ao, mais uma vez, fazer a apologia, ainda que oblíqua, da tortura e da morte de um preso político, vituperando contra a sua memória, agredindo, adicionalmente, seus familiares.

Tem de ser denunciado por mais esse crime de responsabilidade, ainda que se saiba que, hoje, tal denúncia não prosperaria porque, para avançar, precisaria contar com o aceite do presidente da Câmara. Ele só chegaria a ser julgado pelo Senado se dois terços da Casa aprovassem um relatório favorável à sua responsabilização. Não vai acontecer. Mas é preciso deixar a marca na história.

NÃO É A PRIMEIRA VEZ
Não é o primeiro. Bolsonaro já agrediu a Lei 1.079 ao espalhar um filminho pornô, ao encomendar que se comemorasse o golpe, ao mandar destituir de cargo de confiança fiscal que o multara, ao tentar depor
 chefe de nação estrangeira, ao discriminar a Região Nordeste e ao encomendar a um ministro seu que punisse com corte de verbas um adversário político — no caso, o governador Flávio Dino, do Maranhão. Explico tudo neste post. Agora ele o faz mais uma vez. Até quando? Até quando o Congresso Nacional e as cortes seguirem de joelhos para ele.

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Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.