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Reinaldo Azevedo

Em vez de jogar tomate, veja por que STF acertou ao anular decisão de Moro

Reinaldo Azevedo

27/08/2019 21h55

O Supremo tomou uma das decisões mais importantes, se não for a mais importante, desde que questões relativas à Lava Jato são decididas no tribunal. Mais uma aberração estava em curso sem que dela nos déssemos conta. Aberração contra o devido processo legal, contra as garantias individuais, contra o direito à ampla defesa, previsto na Constituição. Não se vai falar aqui sobre inocência ou culpa, mas sobre condenar segundo a Carta Magna ou contra ela.

Por três votos a 1, a Segunda Turma do Supremo anulou a condenação — por corrupção passiva e lavagem de dinheiro — de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras, delatado por diretores da Odebrecht. Bendine havia sido condenado pelo então juiz Sergio Moro a 11 anos de prisão, pena reduzida pelo TRF-4 a sete anos e 11 meses. Será que ele está livre, agora, de qualquer ação judicial? Não! O caso volta para a primeira instância.

O que está na raiz dessa anulação? Vamos ver. A lei garante que a defesa do réu apresente por último ao juiz as alegações finais. E deve ser incontroverso, para gregos e troianos, que assim há de ser. Afinal, as pessoas têm o direito de saber do que as acusa o Estado para que possam se defender. E o juiz formará sua convicção com os elementos que, então, compõem os autos.

Ora, com a advento da Lei 12.850, a da delação premiada, criou-se uma situação realmente insólita, para a qual inexiste, como quer o ministro Edson Fachin, prescrição legal, MAS ISSO NÃO QUER DIZER QUE INEXISTA A PRESCRIÇÃO DA LEI DAS LEIS: A CONSTITUIÇÃO! A que me refiro?

Com a tal lei, tem-se num mesmo banco e num mesmo caso réus colaboradores e réus não-colaboradores. Ora, é evidente que os colaboradores passam a atuar, na prática, como auxiliares da acusação. Aliás, esta só existe, muitas vezes, por causa deles.

Embora esses colaboradores também possam sofrer sanções, o Artigo 4º da lei permite ao juiz liberdade ampla para regular essa pena, concedendo até mesmo o perdão judicial. Lá está escrito:
"O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados (…)"

E aí se listam, vejam lá, os tais resultados que redundam nos benefícios.

Assim, o réu-colaborador não só atua como um auxiliar da acusação do réu não-colaborador como fala, por óbvio, em defesa do próprio interesse.

Ora, é evidente que o juiz não pode considerar que colaboradores e não-colaboradores são réus de mesma natureza quando um é o que acusa, ainda que admitindo eventuais culpas (e essa é uma das condições para ter minorada a sua pena), e o outro é o acusado. Como é que aquele que vai sofrer a sanção do Estado pode entregar ao juiz uma alegação final eficiente se não pode contestar — DIREITO SAGRADO NAS DEMOCRACIAS — a acusação de que é alvo? E acusação, reitere-se, de quem pretende se livrar das próprias penas?

Assim aconteceu com o ex-presidente da Petrobras. Moro definiu que colaboradores e não-colaboradores (como Bendine) entregassem na mesma data as alegações finais. O advogado Alberto Toron recorreu ao Supremo, e o ministro Edson Fachin negou provimento ao habeas corpus. Toron entrou, então, com agravo regimental — para que a Segunda Turma se manifestasse — e prevaleceu o bom senso. Fachin ficou isolado na sua já tradicional fúria punitivista.

Disse o ministro Ricardo Lewandowski: "É irrefutável a conclusão de que, sob pena de nulidade, os réus colaboradores não podem se manifestar por último em razão da carga acusatória de suas informações".

Disse Gilmar Mendes: "A abertura de alegações finais do colaborador deve ocorrer em momento anterior aos delatados. A abertura para alegações finais deve se dar de modo sucessivo. Reconheço que é tema difícil porque a questão se coloca a partir dessa via-crúcis nova, por conta do uso do instituto da colaboração premiada e desse aprendizado institucional que estamos a desenvolver. Uma instituição feita de afogadilho, cheia de defeitos, genérica, permitiu preenchimento de lacunas com muita ousadia".

No primeiro voto em que divergiu de Edson Fachin, Cármen Lúcia afirmou, com acerto: "Nesse caso, temos uma grande novidade no direito. O processo chegou onde chegou por causa do colaborador. Não vejo que estejam na mesmíssima condição".

Para quem não entendeu: os ministros estão dizendo que a colaboração vira, sim!, parte constituinte da acusação. Não reconhecê-lo corresponde a fazer do acusado não-colaborador refém do acusado colaborador — ainda que ambos sejam alvos da persecução penal, mas em condições objetivamente diferentes.

Para Fachin, claro!, "o acusado, ao adotar colaboração, não passa a ser parte acusatória ou assistente de acusação". De fato, ele não vira promotor ou procurador. Mas quem forneceu elementos essenciais ao titular da ação penal? Não foi o delator? Não fala, inclusive, em benefício próprio? Como é que pode se igualar ao que foi alvo da delação?

O caso de Bendine volta à primeira instância. Cumpridos os requisitos constitucionais, pode até vir a ser condenado de novo. Não é essa questão que interessa. Condenado ou absolvido, que o seja segundo o que dispõe a Constituição.

Seu negócio é jogar tomate na imagem de ministros do Supremo e urrar com a galera? Perdeu seu tempo lendo o meu texto.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.