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Reinaldo Azevedo

Na democracia, são procuradores; na ditadura, poderiam ser torturadores

Reinaldo Azevedo

28/08/2019 08h03

Será que as barbaridades ditas pelos procuradores da Lava Jato, sob o comando de Deltan Dallagnol, sobre a morte de dois idosos e de uma criança, familiares de Lula, traduzem apenas um destempero eventual, próprio de conversas de grupos fechados? A resposta, obviamente, é "não".

Lula é tratado, nas conversas, como uma caça, como um bicho que está sendo cercado e acuado, como um alvo. Quem se atreve a lembrar, mesmo entre eles, que o ex-presidente também é portador de direitos, ainda que na condição de réu ou de preso, é imediatamente censurado ou ironizado.

Trata-se de um evento típico de paranoias persecutórias que, infelizmente, podem acometer sociedades de tempos em tempos. É preciso destituir o outro de sua humanidade em nome de algum propósito considerado maior: pode ser a justiça social e a igualdade no caso da extrema-esquerda; pode ser o combate à corrupção no caso da extrema-direita.

Quem não consegue expressar nem mesmo a compaixão decorosa — ainda que inautêntica fosse — diante de quem perde a mulher, um irmão e um neto; quem não consegue sentir um mínimo de empatia, ainda que por alguém que está no cárcere; quem não consegue se deixar tocar pela morte de uma criança, bem, cumpre perguntar: por que pessoas assim estariam interessadas no devido processo legal? Por que pessoas assim se deixariam limitar pelos escrúpulos das garantias que estão nos códigos? Por que pessoas assim se ocupariam de efetivamente fazer justiça?

Os diálogos divulgados por UOL/The Intercept Brasil nesta terça têm mais importância do que se pensa à primeira vista. E ela não se resume a evidenciar a impiedade dos valentes.

A agressão à ordem legal já havia ficado clara em outras jornadas de maneira cabal. Faltava entender a motivação psicológica que movia a turma. E ela vem a público agora, com toda a sua crueza. Lula havia deixado de ser uma personagem do trabalho regular de procuradores em defesa do bem público e da ordem legal. Ele se transformara numa causa.

E, na condição de causa, pouco importa se seus direitos são violados numa ação penal ou quando morre um parente. A fúria punitivista nada tem a ver com a ordem legal e com o triunfo da lei. Era preciso abater o inimigo. E, como se pode constatar, valia tudo.

E o vale-tudo se expressou também na esfera legal. Sergio Moro condenou o ex-presidente sem que o Ministério Público precisasse lhe apresentar uma miserável prova. Permanece o meu desafio para que digam em que página da sentença ela aparece. Procurá-la é inútil, como confessou o então juiz, que deixou redigido com todas as letras:
"Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente. Aliás, já no curso do processo, este Juízo, ao indeferir desnecessárias perícias requeridas pela Defesa para rastrear a origem dos recursos, já havia deixado claro que não havia essa correlação. Nem a corrupção, nem a lavagem, tendo por crime antecedente a corrupção, exigem ou exigiriam que os valores pagos ou ocultados fossem originários especificamente dos contratos da Petrobrás."

Ou por outra: condenação sem prova. O importante era o troféu.

E também ficará para a história o tal PowerPoint de Deltan Dallagnol, exibido numa entrevista coletiva de pornografia jurídica explícita, em que abandona o conteúdo da denúncia que havia acabado de oferecer contra o petista para se dedicar a acusações que não eram matéria da ação penal. Diálogos revelados por The Intercept Brasil evidenciam que Moro elogiou o seu desempenho.

E depois ainda me perguntam por que um liberal como eu, notório crítico do PT, me insurgi contra essa pantomima macabra. Eu poderia dar muitas respostas ancoradas, como tenho feito desde sempre, no direito. Agora, apelo a uma outra raiz. Eu me insurgi contra essa farsa porque tenho vergonha na cara. Poderia até escrever "vergonha na cara liberal". Mas essa última palavra é dispensável.

Basta a vergonha na cara para quem a tem.

Os senhores procuradores inferiram que Lula instrumentalizou ou fingiu o sofrimento pela perda da mulher, do irmão e do neto porque assim eles, procuradores, podiam exercer a própria indignidade impiedosa na pressuposição de que o faziam para se defender de sua vítima.

Aliás, eis aí um clássico: o algoz considera que as vítimas são culpadas pelo mal que ele próprio lhes inflige.

Na democracia, esses caras são procuradores; na ditadura, poderiam ser torturadores.

Afinal, o outro não passa de coisa.

Que os tribunais resgatem a ordem legal e que os procuradores que escreveram o que escreveram sobre os mortos procurem ajuda especializada.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.