Governo em briga literalmente com o papa. “Comunista, peronista, argentino”
Os dados da pesquisa Datafolha indicam que o imbróglio do meio ambiente não contribuiu para melhorar a imagem de Bolsonaro caso se leve em conta o conjunto dos brasileiros. Mas não é para esses que ele fala. É para a sua turma de extremistas. E, nesse caso, a coisa veio a calhar.
O mesmo governo que procurou faturar o avanço do acordo Mercosul-União Europeia — o que só é possível em razão do tão demonizado "globalismo" — vê na questão da Amazônia a chance de voltar a demonizar o… globalismo!
Quem tem mais ou menos a idade deste escriba — 58 anos — cansou de assistir na universidade a filmes e palestras sobre o risco de internacionalização da Amazônia. No caso, as denúncias eram feitas pelas esquerdas. O símbolo da suposta tomada do nosso território era o "Projeto Jari", do bilionário americano Daniel Keith Ludwig. Quando tiverem tempo, pesquisem a respeito. Parte dos militares, justiça se faça, não via a coisa com bons olhos. Mas o projeto acabou associado à ditadura.
Hoje, o "A Amazônia é nossa" virou um mantra da extrema-direita. E, ora, ora, é preciso sustentá-lo em alguma teoria conspiratória. Acusar os comunistas apenas de tentar sequestrar as terras por meio de ONGs, índios e padres, pode parecer um tanto inverossímil.
Então é preciso apontar o dedo contra esse "tal globalismo". Aí, com a ajuda de Olavo de Carvalho, dá-se um triplo salto carpado argumentativo e se sustenta que alguns capitalistas apátridas — George Soros e outros… —, associados ao comunismo (sim, caros, sem comunistas, não se constrói uma conspiração…), usam o meio ambiente como pretexto para se apropriar das nossas riquezas.
A paranoia sobre a internacionalização da Amazônia encontra, infelizmente, eco entre os militares brasileiros. Em entrevista ao Estadão, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e atual assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), diz, por exemplo, que, ao "escapar" para questões ambientais, o Sínodo da Amazônia adquiriu "viés político".
Ocorre que a questão ambiental era pauta do Sínodo desde sempre, e me parece pouco provável que o general ignore a questão.
Afirma ele sobre o evento:
"Estamos preocupados, sim, com o que pode sair de lá, no relatório final, com as suas deliberações. E, depois, como tudo isso vai chegar à opinião pública internacional porque, certamente, vai ser explorado pelos ambientalistas. Agora, que fique claro: não vamos admitir interferência em questões internas do nosso País. Lá, nas discussões, as coisas se misturam e o Sínodo escapou para questões ambientais e também tem o viés político."
Os temas do Sínodo, que ocorre entre os dias 6 e 27 de outubro, estão no site da CNBB faz tempo. Foi convocado pelo papa Francisco no dia 15 de outubro de 2017. Seu título não poderia ser mais eloquente: "Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral". Reproduzo as palavras de Francisco quando o convocou:
"[a finalidade] é "encontrar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, sobretudo dos indígenas, muitas vezes esquecidos e sem a perspectiva de um futuro sereno, também por causa da crise da floresta Amazônica, pulmão de importância fundamental para o nosso planeta".
Villas Bôas não vai mudar a natureza da Igreja. Ela chegou ao Brasil antes do Exército — ou, para valer, junto com outro Exército, o de Santo Inácio de Loyola. E tinha ideias sobre a evangelização dos índios que nem sempre coincidiam com a dos colonizadores ou dos estados nacionais que lhes davam suporte. É uma história antiga.
Diz o militar sobre os bispos:
"Eles não são inimigos, mas estão pautados por uma série de dados distorcidos, que não correspondem à realidade do que acontece na Amazônia. Seria muito mais proveitoso que eles, institucionalmente, procurassem o governo brasileiro para se inteirar do que realmente está acontecendo, das intenções, das práticas e o progresso que o governo quer implantar para aquela região."
Mas o que impede o governo de buscar esse diálogo, general? A Igreja não é mais Estado. E o senhor sabe que não haverá uma força militar do Vaticano pronta a invadir as terras amazônicas. Será que não está faltando, também da parte do Estado brasileiro, um debate qualificado?
Peguemos a questão das reservas indígenas, que entraram na mira da retórica belicosa de Bolsonaro e também do general Augusto Heleno, titular do GSI, assessorado por Villas Bôas. Estou entre aqueles que acreditam que parte considerável dos 13% do território nacional que a elas estão destinados pode e até deve abrigar produção agrícola, ambientalmente sustentável. Mas por que sair por aí, aos quatro ventos, com um discurso de confronto?
Há reservas hoje improdutivas, que abrigam índios plenamente aculturados, que deveriam estar integradas ao sistema produtivo brasileiro. Mas eis o ponto: essa não é uma verdade universal. Se isso é fato para uma parcela das reservas, não é para outras. E não vai se chegar a um bom lugar vituperando contra a existência dessas áreas ou contra a política ambiental.
O problema, general, é estarmos com um governo que, em vez de buscar interlocutores, busca adversários. Em vez de investir, então, no diálogo e no esclarecimento, investe no confronto.
Afirma Villas Bôas:
"Os índios ficaram entre os discursos das ONGs e o fato de não conseguirem trabalhar, evoluir e ter suas necessidades atendidas. Por outro lado, as ONGs trabalham para que os índios continuem dependentes delas, para que os recursos só possam chegar até eles por meios dessas ONGs. Eu sou favorável a que se identifique, em cada comunidade indígena, qual a sua vocação econômica. Mas é muito importante que os órgãos do governo sejam estruturados e aparelhados para terem real capacidade de fiscalização e acompanhamento do que acontece nas aldeias."
Muito bem, general, então que parte de sua fala seja política de governo. Mas cabe a pergunta: é?
Cadê a identificação da vocação econômica em cada comunidade indígena — inclusive aquelas cuja vocação é não ter vocação nenhuma segundo os nossos padrões de produção? Suponho que o senhor não queira transformar os ianomâmis em agricultores ou criadores de bois. Porque isso não vai acontecer. Eles seriam exterminados sem que se colhesse um pé de mandioca.
A propósito: onde estão os órgãos do estado "estruturados e aparelhados para terem real capacidade de fiscalização"? Infelizmente, as medidas levadas a efeito pelo governo no Meio Ambiente e na Funai contribuíram para fazer justamente o contrário. O juízo genérico sobre as ONGs também não ajuda, não é mesmo? Certamente há as que fazem um trabalho correto e meritório, justamente para enfrentar o estado desaparelhado.
Villas Bôas é um homem intelectualmente preparado e faço aqui a aposta de que vai acabar buscando o diálogo. Mas sua fala deixa entrever um governo que se sente acuado, agora, pela Igreja Católica também. Como se diz vítima dos países europeus. E das ONGs. E ainda dos interesses internacionais. E, como não poderia deixar de ser, do comunismo internacional…
Por que tantos fantasmas se conjurariam para travar uma batalha contra Bolsonaro se a lei ambiental fundamental do Brasil, o Código Florestal, continua o mesmo?
O Brasil se tornou a maior potência agropecuária do mundo dialogando com as demandas ambientais. E assim se aprovou, em 2012, um Código Florestal que combinou preservação com produção. O país corre hoje o risco de sofrer severas sanções nessa área porque resolveu travar uma guerra desnecessária com inimigos fantasmas.
E não são os fantasmas que desmatam e queimam a Amazônia e que invadem as reservas indígenas com garimpo predatório. Por que isso ganhou uma dimensão planetária? Porque os transgressores da lei acham que agora podem fazê-lo sem correr riscos.
O caminho está errado. E pode custar caro ao conjunto dos brasileiros, também aos que estão longe da floresta e não são índios. A soberania também é um exercício de compartilhamento civilizatório. E parte da civilização está sob a guarda do governo brasileiro. E assim tem de continuar. Mas é preciso governar com sabedoria, não é mesmo?
Quanto tempo demora para que aqueles de sempre nas redes sociais comecem a chamar o papa de "comunista, peronista e argentino"?