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Reinaldo Azevedo

Propostas de Moro legalizariam e multiplicariam assassinatos à moda Witzel

Reinaldo Azevedo

23/09/2019 07h18

Imagem de Moro está sobreposta à foto de autoria de Pilar Olivares, da Reuters. O sangue se espalha no chão da casa em que 15 pessoas foram mortas pela Polícia no morro do Fallet no dia 8 de fevereiro. Do modo como ministro quer o Código Penal, isso pode virar só uma rotina aborrecida

A morte da menina Ágatha Vitória Sales Félix traz para o centro do debate o pacote anticrime de Sérgio Moro, que dá à polícia carta branca para matar.

O Artigo 23 do Código Penal já garante não haver crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou no cumprimento do dever legal. Parágrafo único diz que esse agente deve responder pelo excesso doloso ou culposo. Moro quer introduzir um Parágrafo 2º com o seguinte conteúdo:
"O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção."

Vale dizer: aí cabe qualquer coisa. Será impossível punir um excesso.

O Artigo 25 do mesmo código, como está hoje, especifica:
"Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem"

Moro quer acrescentar um Parágrafo Único com dois incisos. Também atuariam em legítima defesa:
I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e

II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

As alterações propostas nos dois artigos legalizam a política do abate de Wilson Witzel. O Ministério da Justiça emitiu uma nota de solidariedade com a família de Ágatha. Não consegue esconder sua frieza burocrática:
"O Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, lamenta profundamente a morte da menina Ágatha, é solidário à dor da família, e confia que os fatos serão completamente esclarecidos pelas autoridades do Rio de Janeiro. O Governo Federal tem trabalhado duro para reduzir a violência e as mortes no país, e para que fatos dessa espécie não se repitam".

Se as duas mudanças que Moro quer fazer no Código Penal forem aprovadas pelo Congresso, corpos de Ágathas se multiplicarão país afora.

Restará a Moro e a Witzel, quem sabe?, tentar provar que, não obstante o açougue nacional de carne infantil e preta, terá havido uma diminuição no número de homicídios.

ANTECEDENTES
No começo do ano, a catástrofe já se anunciava. No dia 8 de fevereiro, 15 pessoas foram assassinadas pela Polícia no Morro do Fallet, no Rio. Todos criminosos? É até possível. O fato é que sobram evidências de que foram mortos depois de rendidos. Obviamente não se ouviu uma palavra do ministro da Justiça. Ao contrário: Witzel estava já exercitando a "Código Penal de Moro".

Escrevi então:
O pacote de Sérgio Moro ainda nem foi aprovado, mas já produz seus primeiros cadáveres. Sim, é verdade! O presidente Jair Bolsonaro prometeu "direitos humanos para humanos direitos". Wilson Witzel, o governador do Rio, anunciou o tiro "na cabecinha". Estupidez e retórica brutalista. Mas quem deu verniz à barbárie foi mesmo o novo ministro da Justiça, com seu particularíssimo entendimento do que venha a ser legitima defesa, excesso e ação preventiva. Durante mais de quatro anos — desde o início da Lava Jato —, chamei a atenção dos meus colegas de imprensa para a retórica ambígua de Moro em matéria de cumprimento de lei e para o viés autoritário do seu modo de fazer justiça. Alertei que havia ali algo vizinho, senão ele mesmo, de um projeto político. Arquei com as consequências da crítica — mormente porque todos sabem que não pertenço à igreja petista nem sou da esquerda. Faziam, então, uma pergunta surda: "Se esse cara escreveu e escreve o que se sabe sobre o PT, por que a crítica a Moro e à Lava Jato? Eles têm um lado bom: combatem a corrupção". A minha resposta era e é óbvia: o ex-juiz, agora ministro, não está nem aí para a lei. Quando à questão política, bem… Acho que posso dispensar-me de explicitar o óbvio. O governo Witzel já entregou a sua primeira penca de carne preta, a mais barata do mercado. Vem muito mais por aí. Todos trazem a marca simbólica da "Lei Moro", mesmo sem a aprovação do Congresso, que se pode dar como certa.

No dia 6 de maio, escrevi um post post  sobre uma operação desfechada pelo governador em Angra dos Reis dois dias antes. Reproduzo um trecho:

O despudor do governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), em temas relacionados à segurança pública, dentre outros, deve assombrar até os fãs mais entusiasmados do presidente Jair Bolsonaro, que costumam regurgitar por aí aquela frase que vale como divisa de um esquadrão da morte: "Direitos humanos para humanos direitos". Witzel pretende ser uma alternativa ainda mais truculenta ao, vamos dizer, bolsonarismo de raiz. Se o presidente conta com generais no Palácio que lhe servem, ainda que precariamente, de elemento de contenção, Witzel pode atuar sem freios. E seu despudor é assombroso.

Na tarde de sábado, nós o vimos embarcar num helicóptero da polícia que depois é flagrado uma chuva de balas sobre comunidades necessariamente pobres de Angra dos Reis — ou havia mansões do outro lado do cano? Na sequência, o governador se hospedou com a família no hotel Fasano da cidade, considerado de altíssimo luxo. Passou lá o fim de semana. A diária mais barata sai a R$ 1.600. Por pessoa. A assessoria do governo não quis dizer quem pagou. Um fim de semana e tanto para a sua visão de mundo e a de seus admiradores, não é? Depois de participar de uma operação que despejou uma saraivada contra áreas em que moram pobres, o governador foi curtir um pouco a vida entre os ricos. Tentei saber quantas arrobas de carne preta e pobre a operação rendeu neste fim de semana, enquanto o governador se esgueirava entre lençóis de algodão egípcio, mas não há dados disponíveis.

À frente de um helicóptero já com os motores ligados, Witzel grava um vídeo ao lado de Fernando Jordão (MDB), prefeito de Angra, e anuncia:
"Olá pessoal, estamos começando aqui em Angra dos Reis, a pedido do prefeito, Fernando Jordão, uma operação em Angra dos Reis. Começando com a Core, com a Polícia Militar, com a Polícia Civil, para acabar de vez com a bandidagem que está aterrorizando a nossa cidade maravilhosa de Angra dos Reis
."
(…)

A PRODUTIVIDADE DA MORTE
Dois dias depois do ataque a Angra, outra operação da área de segurança do governo Witzel fez mais oito vítimas da Favela da Maré. E, mais uma vez, lá estava o helicóptero a despejar bala em pretos e pobres.

Escrevi, então, o post "Corram, crianças pobres e pretas! Olhem o helicóptero de Witzel! E o Fasano."

Como se nota, o Ministério Público Estadual do Rio pode fechar os olhos para as ações criminosas do governo do Estado. Eu não fecho. Aqui não se fecha.

Nem se esquece a cumplicidade de Sergio Moro.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.