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Reinaldo Azevedo

BOLSONARO NA ONU 1: O que falou de certo, ou quase, o estadista bolsomínion

Reinaldo Azevedo

24/09/2019 17h20

Bolsonaro durante o discurso de abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas (foto: ONU)

Jair Bolsonaro não discursou para os respectivos chefes das demais nações estrangeiras presentes à Assembleia Geral da ONU, para o conjunto dos brasileiros, para a tal "aldeia global" interessada no destino da Amazônia, para investidores ou para pessoas preocupadas em temas que dizem respeito ao concerto das nações. O presidente da República Federativa do Brasil falou para os seus radicais na Internet.

Tratou-se de uma fala extremista, passadista, reativa, agressiva, em que duas ou três verdades se perderam num amontoado de mistificações, simplificações grotescas e até mesmo grosseria. Como ignorar que o presidente do Brasil tentou ensinar ao mundo o que é a ONU? Afirmou: "Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um "interesse global" abstrato. Esta não é a Organização do Interesse Global! É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer!"

Eis aí o que se pode chamar de "Agenda Steve Bannon", que hoje embala governos populistas de extrema-direita mundo afora. Ora, quem pensa o contrário? De onde vem esse tal "globalismo" senão das teses paranoicas, ali expostas de modo nada sutil, segundo as quais existe uma força maligna — o comunismo! — que quer dominar o mundo?

Houve tempo até para falar algumas verdades inteiras e outras recheadas de imprecisões. Mas elas não foram suficientes para compensar as impertinências que, a virarem políticas públicas — o tempo dirá —, podem trazer dificuldades sérias para o país. É bom o agronegócio abrir o olho. De fato, apenas 8% do território brasileiro são destinados à agricultura, mas outros quase 20% são ocupados pela pecuária. Perto de 30%, pois, das terras brasileiras servem à produção de alimentos. Esses quase 30% é que têm de ser confrontados com os mais de 50% a que aludiu o presidente quando se refere aos países europeus.

Também é verdade que 14% do nosso território são hoje ocupados por reservas indígenas ou áreas demarcadas. Bolsonaro poderia ter tratado da questão como um ativo, a evidenciar o respeito que tem o país pelos índios. Mas aí vem a tentação de falar a seus radicais. Emendou:
"O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros. E esses territórios são enormes. A reserva Ianomâmi, sozinha, conta com aproximadamente 95 mil km² , o equivalente ao tamanho de Portugal ou da Hungria, embora apenas 15 mil índios vivam nessa área. Isso demonstra que os que nos atacam não estão preocupados com o ser humano índio, mas sim com as riquezas minerais e a biodiversidade existentes nessas áreas."

Há vários problemas aí. De saída, destaque-se que o fato de haver uma grande extensão de terra para 15 mil índios não é evidência de que estão de olho nas nossas riquezas. Confundir as características de Raposa Serra do Sol, que abriga índios aculturados, com a área dos ianomâmis corresponde a desprezar evidências factuais. Se os habitantes da primeira podem e até devem conviver com a agricultura e a pecuária, trata-se de uma impossibilidade no segundo caso. Aí a escolha é outra: trata-se de decidir se o Brasil pretende ou não banir os ianomâmis do seu território. Se a resposta for "sim", isso será bom o país? A pergunta é puramente retórica.

Bolsonaro também diz a verdade quando afirma que 4 milhões de venezuelanos deixaram seu país em razão dos desastres do regime chavista. Quando, no entanto, acena com o fantasma do "Foro de São Paulo", como se fosse o ente de razão que comanda a ditadura naquele país, investe na fantasia e no delírio.

O presidente diz o certo, ainda que óbvio, quando fala em facilitar o ambiente de negócios, ainda que exagere nos próprios feitos. E aqui termina o que houve de objetividade na fala do presidente.

Nada que mude o conteúdo, no geral, potencialmente desastroso do discurso. Farei mais tarde um post sobre os aspectos grotescos do discurso.

Sim, foi um discurso com ambições, digamos, totalizantes, de quem pretende falar como a voz de uma nação. Nesse sentido, ouviu-se a voz de um estadista. O estadista dos bolsomínions.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.