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Reinaldo Azevedo

Rosa Weber dá um belo e solar voto em defesa da Constituição. Foi coerente!

Reinaldo Azevedo

24/10/2019 16h54

A ministra Rosa Weber deu um voto exemplar e ainda lembrou o excelente poema de Kafávis, "à espera dos bárbaros". Foto: Carlos Moura, SCO/STF

A ministra Rosa Weber deu um voto que pode ser considerado exemplar sobre, afinal, aquilo que está em julgamento: o Artigo 283 do Código de Processo é compatível com ou não com a Constituição? É isso que está em julgamento nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade. E ela disse o óbvio: é!

Reitero: isso nem deveria estar em votação. Basta que se cotejem os textos, e a compatibilidade está materialmente dada:

Artigo do 283 do Código de Processo Penal:
"NINGUÉM PODERÁ SER PRESO SENÃO em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, EM DECORRÊNCIA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva."

Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição:
"NINGUÉM será considerado CULPADO até o TRÂNSITO EM JULGADO de sentença penal condenatória"
.

Não há ser humano capaz de evidenciar o contrário. Não o foram os três ministros que votaram em favor da execução da pena depois da condenação em segunda instância: Alexandre de Moraes, Roberto Barroso e Edson Fachin.

Há, é bem verdade, diferenças de argumentação. Moraes entende, em síntese, que a culpa está evidenciada depois da condenação em segunda instância e entende que, para se dar eficácia à lei penal, a execução da pena pode ser aplicada antes da decisão da terceira instância porque se esgotou a presunção de inocência.

Discordo de modo absoluto, como sabem. Mas há um esforço interpretativo aí muito distante do que considero a desonestidade intelectual dos votos proferidos por Barroso e Fachin. O primeiro resolveu convocar a cólera das ruas contra o tribunal, ainda que a seu modo: enviesado e cheio de fru-frus retóricos. O segundo resolveu dar novo sentido às palavras.

Voltemos ao voto de Rosa Weber. Ele tem alguns pilares.

1: DISTINÇÃO ENTRE HABEAS CORPUS E VOTAÇÃO DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL
A ministra ocupou boa parte do seu tempo evidenciando que o voto que estava prestes a dar não seria contraditório com posições antes proferidas. Lembrou que, no julgamento do famoso habeas corpus de 2016, integrou a minoria de quatro ministros que se opôs à autorização para a execução provisória da pena.

No famoso julgamento do habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, em 2018, fez parte da maioria de 6 a 5 que manteve o presidente na cadeia. Lembrou agora que observara então, e é verdade, que dava aquele voto em nome da colegialidade. E destacou que outra poderia ser a sua posição caso se estivesse julgando uma ação que tratasse do chamado controle de constitucionalidade — isto é, que se debruçasse sobre a norma abstrata.

Atenção! As ADCs já estavam prontas para julgamento, mas Cármen Lúcia, presidente então da Corte, negou-se a pautá-las.

A ministra Rosa acerta agora as contas: se seguiu a maioria no julgamento dos habeas corpus que foram parar no plenário porque não se havia feito ainda o exame da questão segundo o que dispõe a Constituição, chegou a hora examinar o que estabelece a norma abstrata e se a lei menor, o Artigo 283, é compatível com ela. E, obviamente, é. Até porque dizem a mesma coisa, com a diferença de que a Constituição fala em "culpa", e o CPC fala sobre a execução da prisão.

2: A FALÁCIA SOBRE OS TRATADOS INTERNACIONAIS
Rosa lembrou, e é um espanto que isso seja necessário, que as punições no Brasil hão de se dar segundo o que dispõe o nosso ordenamento jurídico. Os tratados internacionais que preveem ao menos o duplo grau de jurisdição — execução da pena depois da condenação em segunda instância — estabelecem um mínimo civilizatório de garantias, não o seu limite. Mas todos eles, e a lembrança foi oportuna, preveem que tais punições se deem segundo o ordenamento legal. E o nosso ordenamento legal define a culpa (Constituição) ou a prisão (CPP) depois do trânsito em julgado.

3: A FALÁCIA SOBRE A IMPUNIDADE
A ministra também atacou a tese de que a espera pelo trânsito em julgado para a execução da pena promove a impunidade. Destacou que o próprio Artigo 283, que tem a sua constitucionalidade examinada, prevê as outras modalidades de prisão: flagrante delito, prisão provisória e prisão preventiva.

Havendo, pois, razão para uma delas, nada impede que se mantenha afastado do convício social quem oferece risco efetivo. No caso da prisão preventiva, os requisitos estão dados no Artigo 312 do Código de Processo Penal.

Há outros aspectos do voto que destacarei oportunamente. A ministra ainda fez referência ao chamado "argumentum ad terrorem" — no qual incidiu Roberto Barroso — prevendo o apocalipse caso se cumpra a Constituição.

E fez um favor: lembrou o poema "À Espera dos Barbaros", de Constantino Kafávis, na belíssima tradução do poeta português Jorge de Sena.

Lembrança oportuna para ser afastada. Não estamos como os últimos dias do Império Romano e não precisamos dos bárbaros para dizer o que devemos fazer.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.