Toffoli votou certo na 5ª, mas propôs Carta no lixo por maioria simples
Dias Toffoli, presidente do Supremo, resolveu dizer o óbvio para quem considera que as palavras fazem sentido e votou pela constitucionalidade do Artigo 283 do Código de Processo Penal. O texto, afinal, repete o conteúdo do Inciso LVII do Artigo 5º, que é cláusula pétrea.
Mas Toffoli também resolveu brincar com o perigo e acordar a besta. Na cadeira da presidência do Supremo e em entrevista, afirmou que cabe ao Congresso mudar a regra e instituir a execução da pena de prisão depois da condenação em segunda instância.
Aí as coisas se complicam bem. A desordem legal e constitucional nos espreita.
O Parágrafo 4º do Artigo 60 da Constituição estabelece:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
O Artigo 5º da Constituição, com seus 78 Incisos e quatro parágrafos, compõe o "Capítulo I" do "Titulo II" da Carta e tem um nome, estampado em caixa alta: "DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS".
O constituinte, portanto, gravou na própria Constituição os elementos que só podem ser abolidos por uma nova Carta. Emendas constitucionais podem acrescentar direitos ao referido artigo, mas nunca suprimi-los.
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" é nada menos do que o Inciso LVII do Artigo 5º. E notem que é uma garantia individual que vem expressa na forma de uma vedação sem brechas.
Se tal inciso pode ser alterado, qual não pode?
Se não é mais cláusula pétrea o que a Constituição diz ser, então o que será?
Se o Inciso IV do Parágrafo 4º do Artigo 60 pode ser ignorado, por que as demais vedações não poderão um dia?
ABERRAÇÃO
Vamos relembrar. O trecho que estava em exame do Artigo 283 do Código de Processo Penal define: "Ninguém poderá ser preso senão (…) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado" Obviamente, isso é compatível com a garantia individual, que é cláusula pétrea, do Inciso LVII do Artigo 5º: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Toffoli votou por essa compatibilidade.
Diz o ministro, no entanto, que o Congresso pode fazer a mudança e que esta seria possível por meio de projeto de lei.
Logo, ele está a sugerir que se mude o Artigo 283 do CPP. É mesmo? Segundo o voto do próprio Toffoli, se isso acontecesse, o dito-cujo, então, deixaria de ser compatível com a Constituição. Ou o doutor vê a compatibilidade tanto na prisão depois do trânsito em julgado como depois da condenação em segunda instância?
Na CCJ da Câmara, tramita uma emenda que ousa mudar o Inciso LVII — tentando, pois, meter a mão naquilo que a Constituição consagra como intocável.
OUSADIA CRIATIVA
Em matéria de direito criativo, ninguém perde em ousadia para o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). Ele não quer mexer na cláusula pétrea nem no CPP. Teve uma outra ideia. Fazer uma emenda ao Artigo 93 da Constituição, que define as bases para o Estatuto da Magistratura, instituir a prisão a partir da segunda instância, mas conferindo ao juiz a possibilidade de decretar efeito suspensivo da execução da pena em caso de recurso ao STJ e ao STF.
O troço nem errado consegue ser. Mas Simone Tebet (MDB-MS), presidente da CCJ, afirmou que deve pautar a votação da proposta na comissão já na semana que vem.
Digamos que a estrovenga prosperasse, sendo aprovada no Senado e na Câmara, e que o Supremo não a considerasse inconstitucional: o Artigo 93 da Constituição diria uma coisa, e o 5º, outra.
BRINCANDO COM FOGO
Ao sugerir que um projeto de lei pode, por maioria simples, instituir a prisão depois da condenação em segunda instância, afrontando o Inciso LVII do Artigo 5º, Toffoli está brincando com fogo. Incentiva grupos de pressão a rasgar a Constituição, bastando, para tanto, 129 deputados e 21 senadores.
Tal proposta, se aprovada e promulgada por Bolsonaro, renderia uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ao Supremo. Já sabemos que Toffoli votaria "não". Se os outros cinco que se posicionaram contra o que dispõe o Inciso LVII do Artigo 5º fizessem a mesma coisa, a desordem estaria instalada. Com 129 senadores e 21 deputados, poder-se-ia reescrever a Constituição. Bastaria que seis ministros do Supremo topassem.
Virou deboche.
O TOFFOLI GARANTISTA E FLÁVIO BOLSONARO
Daqui a alguns dias, a decisão do presidente do Supremo, que suspendeu inquéritos que recorreram a quebras de sigilo sem autorização judicial, será votada pelos seus pares. Flávio Bolsonaro é um dos interessados em que prevaleça o veto de Toffoli.
Já deixei claro aqui: é evidente que considero que quebra informal de sigilo viola a Constituição. Aliás, ao conceder a liminar que paralisou as investigações, Toffoli apelou a dois Incisos do Artigo 5º, a saber:
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Convenham: esses dois incisos são menos explícitos no veto à quebra de sigilo sem autorização judicial do que é o LVII na exigência do trânsito em julgado para a declaração de culpa.
Pergunto ao ministro: também nesse caso, o senhor sugere um simples projeto de lei para pôr fim a direitos fundamentais? Ou, desta feita, veremos o ministro garantista, que não abre mão do que dispõe a Carta?
Se bastam 129 deputados e 22 senadores para decidir algo tão grave como a hora de prender, por que um grupo igualmente reduzido não poderia dispor sobre o sigilo?
Estão querendo negociar com o capeta da indeterminação e do vale-tudo.
Daqui a pouco alguém lembra daquela metáfora do sargento e do cabo que podem fechar o Supremo, sem nem precisar de um jipe.
Ou, então, sugere um novo AI-5. Sob silêncios cúmplices.
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ERRO DE DIGITAÇÃO E CORREÇÃO: O Parágrafo 5º da Constituição dispõe de 78 incisos, não 88, conforme constava no texto.