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Reinaldo Azevedo

LICENÇA PARA MATAR 1: Excludente de ilicitude quer golpe por projeto de lei

Reinaldo Azevedo

25/11/2019 03h11

Manifestantes protestam na Cinelândia contra ordem dada por Bolsonaro, em março, para comemorar o golpe de 1964 (Foto: Daniel Ramalho/AFP)

Já escrevi na minha coluna na Folha, na semana passada, a minha impaciência com essa conversa de "riscos da polarização na política", tema frequente depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a cadeia. Os significados derivados de uma palavra constituem uma das essências da literatura e, de certo modo, da arte. Na esfera da ciência, do direito, da política — ou para pedir bife com batatas fritas —, só a denotação nos une. Vale dizer: fiquemos com o sentido dos vocábulos que nos fornece o dicionário. Ora, se o presidente Jair Bolsonaro, com tudo o que carrega, é um polo de poder, só faz sentido ao maior partido de oposição ser o outro polo.  O que há de errado nisso? Se querem condenar extremismos, então estaremos a falar da coisa certa — ou, por outra, a condenar o condenável. E, nesse caso, cumpre dizer: se o PT aposta na polarização, Bolsonaro está fazendo a profissão de fé no extremismo. E aí que mora o perigo. E a chave para entender o ponto é a expressão "excludente de ilicitude".

Vamos ver. O governo entregou, por intermédio de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, um projeto de lei que isenta de punição os agentes públicos que atuem em operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Trata-se de uma versão, com um viés, particular, da proposta que integra o tal pacote anticrime de Sergio Moro, que foi rejeitada pela Comissão Especial da Câmara. O ministro, claro!, insiste que a questão seja apreciada pelo Congresso. No texto enviado pelo general, o mecanismo valeria apenas para as tais operações especiais.

Sob o pretexto de garantir aos agentes de segurança a serviço do Estado o direito à legítima defesa — coisa de que já dispõem hoje —, dá-se licença para matar, estabelecendo-se o exótico conceito de presunção de legitima defesa. Traduzindo: atire primeiro e avalie o risco real depois. Lá está escrito: "Esta Lei estabelece normas aplicáveis aos militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem (…) Aplica-se ainda aos integrantes dos órgãos a que se refere o caput do art. 144 da Constituição e da Força Nacional de Segurança Pública, quando prestarem apoio a operações de Garantia da Lei e da Ordem."

Além, pois, dos membros das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança, seriam alcançados pela lei, desde que em operações de Garantia da Lei e da Ordem, os membros da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis, das polícias militares e dos bombeiros.

Estabelece o projeto no Artigo 2º:
Art. 2º Em operações de Garantia da Lei e da Ordem, considera-se em legítima defesa o militar ou o agente que repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Alguém dirá: "Ah, parece razoável". Calma! Vamos ver, então, a definição de legítima defesa, que está no Parágrafo Único do Artigo:
Parágrafo único. Considera-se injusta agressão, hipótese em que estará presumida a legítima defesa:
I – a prática ou a iminência da prática de:
a) ato de terrorismo nos termos do disposto na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016; ou
b) conduta capaz de gerar morte ou lesão corporal;
II – restringir a liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; ou
III – portar ou utilizar ostensivamente arma de fogo.

O fabuloso é que o atual Código Penal já trata da "Exclusão de Ilicitude" no Artigo 23, afirmando não haver crime quando o agente atua em "estado de necessidade" (Artigo 24), em legítima defesa (Artigo 25) ou no cumprimento do dever legal.

Onde está a inovação brutalista e reacionária da proposta de Bolsonaro, presente também, ainda que de modo diferente, no tal pacote de Sergio Moro? Parágrafo Único do Artigo 23 do atual Código Penal dispõe que o agente responderá pelo excesso doloso ou culposo de sua ação. No projeto entregue pelo ministro da defesa, inexiste a palavra "culposo". Portanto, só se responderia pelo dolo. E, ainda assim, o juiz poderá atenuar a pena — não se dispõe sob quais circunstâncias. Em qualquer caso, descarta-se a prisão preventiva. E a defesa do agente será feita pela União.

O projeto de Moro mantém a responsabilização também por excesso culposo, mas acrescenta um Parágrafo 2º do Artigo 23 do Código Penal, segundo o qual "o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção." Como se vê, cabe tudo aí. O que é "escusável medo"? E "surpresa"? E "violenta emoção"?

Sim, o Brasil é um dos países do mundo em que mais se mata e se morre sem o concurso das forças de segurança. Mas também tem, com índices diferentes entre os Estados, uma das polícias mais letais do mundo.

A combinação dos dois projetos de excludente de ilicitude — o de Moro e este agora de Bolsonaro, que valeria para as operações de Garantia da Lei e da Ordem — tem o potencial de aumentar brutalmente a carnificina no país. Seria praticamente impossível punir os excessos. Não é estupefaciente que o presidente que funda um partido que tem a arma como um dos pilares reivindique o direito de aplicar a pena de morte sem julgamento a quem estiver portando uma… arma, ainda que não em situação de ameaça a um agente do Estado?

Mais: as operações de Garantia da Lei e da Ordem são aplicadas para coibir situações extremas de insegurança pública, com potencial risco de convulsão social e podem, sob certas circunstâncias, servir para reprimir protestos que tenham motivação política. Pergunta-se: é aceitável que, na democracia, sob qualquer pretexto, as forças de segurança tenham carta branca para matar? É sobre morte que se fala aqui.

Desde que eclodiram os protestos no Chile, Bolsonaro e seu entorno — Eduardo, um de seus filhos, especulou sobre a possibilidade de um novo AI-5 — parecem estimular, quem sabe torcendo para que ocorra, uma convulsão social no Brasil.

O presidente não esconde de interlocutores que ele considera a proposta de excludente de ilicitude para as operações de Garantia da Lei e da Ordem fundamental para conter distúrbios que, ora vejam, nem existem! Ainda que existissem, o país dispõe de leis para coibi-los e para punir eventuais crimes sem precisar atirar para matar.

O seu projeto sobre o GLO marca mais uma inovação destes tempos: é uma espécie de golpe militar desfechado por projeto de lei. E se o texto for rejeitado ou nem for votado? Então Bolsonaro ameaça não apelar mais às operações de Garantia da Lei e da Ordem. Parece dizer: "Ou se pode matar ou danem-se!".

Ao endossar o projeto, o ministro da Defesa compromete as Forças Armadas com o que, de resto, agride valores constitucionais.

Quem dá uma espécie de certificado moral para a indecência? Ele! O inefável Sergio Moro, que, infelizmente, continua a ser o principal pauteiro de setores consideráveis da imprensa.

Os que não gostam da tal polarização que se esforcem para criar um polígono, com ângulos múltiplos. O problema não está aí. O problema está no extremismo de quem sonha em comandar a barbárie.

EXAGERO?
Exagero ao falar em proposta de golpe por projeto de lei?

Ora, se todas as forças de segurança do país teriam licença para atuar ao arrepio de garantias constitucionais, detendo o monopólio do uso legítimo da força — ou da violência, para ficar na expressão clássica —, então se trata mesmo de golpe branco de estado.

Leia mais:

Licença para matar 2: projetos concedem, na prática, imunidade para as milícias

Licença para matar 3: leia a íntegra do projeto sobre excludente de ilicitude em GLO

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.