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Reinaldo Azevedo

Lula, um texto de Moro de 2004 e uso da imprensa como instrumento político

Reinaldo Azevedo

12/12/2019 08h15

Lula discursa da Faculdade de Direito da USP e critica alinhamento da imprensa com a Lava Jato (Foto: Bruno Santos)

"Neste país, houve um acordo tácito entre a imprensa brasileira e o coordenador da Lava Jato, que é o [ex-juiz Sergio] Moro. O Moro, antes de começar o processo, ele visitou o Estadão, visitou a Folha, visitou o Globo, visitou a Record, visitou Bandeirantes, visitou SBT e, com isso, conseguiu o seguinte acordo, num documento que ele publicou chamado Mani Pulite, em que está descrito que só era possível prender políticos, prender gente rica se a imprensa ajudasse".

A fala acima é de Lula em evento ocorrido nesta quarta na Faculdade de Direito da USP, durante lançamento do livro "Lawfare, uma Introdução", escrito por Cristiano Zanin e Valeska Teixeira, seus defensores, em conjunto com o advogado Rafael Valim.

Vamos ver.

O que há de verdade nesse trecho do discurso? De fato, o texto de Moro existe. É de 2004. A Lava Jato começou em 2014, mas passou a circular em todo canto. De fato, lá está escrito:
"Os responsáveis pela Operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: para o desgosto dos líderes do PSI (Partido Socialista Italiano), que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da 'mani pulite' vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no "L'Expresso", no "La Repubblica" e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil.
O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva. Craxi, especialmente, não estava acostumado a ficar na posição humilhante de ter constantemente de responder a acusações e de ter a sua agenda política definida por outros.
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.

Como se nota, Moro faz, na prática, a apologia dos vazamentos — que, por óbvio, são ilegais quando a investigação está sob segredo de Justiça. Conversas entre procuradores da Lava Jato, reveladas pelo site "The Intercept Brasil", evidenciam que os procuradores se organizavam para os vazamentos, selecionando os veículos e os jornalistas os quais as informações sigilosas seriam repassadas.

Observem que o então juiz trata até de maneira até jocosa o expediente ilegal dos vazamentos. E o considera peça central na estratégia de ganhar a opinião pública. Sim, o roteiro se repetiu no Brasil. Com igual sucesso.

A íntegra do ensaio de Moro está aqui . Recomendo que leiam. De fato, o então juiz e a força-tarefa seguiram rigorosamente os passos daquela operação. Mas é uma fantasia essa história contada por Lula, segundo a qual o juiz fez uma peregrinação "antes de começar o processo".

Que coisa, né? Os desdobramentos na Itália e no Brasil se parecem, não é mesmo? Por lá, o poder caiu no colo do bufão Silvio Berlusconi. Aqui, deu em Jair Bolsonaro — eleito, sim, pela Lava Jato, além de uma facada.

IMPRENSA
Lula fale o que quiser ao tratar do assunto. Mas, dando consequência prática a seu discurso, não seria impossível, num mesmo dia, bolsonaristas e petistas se juntarem na Avenida Paulista para atacar a imprensa. Uns poderiam ocupar o sentido Rebouças-Paraíso, e os outros, Paraíso-Rebouças.

Não me incomoda, por óbvio, tal crítica porque, afinal, faço parte da imprensa. É que se trata de um erro factual. Há pluralidade entre as empresas no tratamento desse e de outros assuntos. E também existe diversidade — com exceções — dentro dos próprios veículos de comunicação. O discurso pode até excitar episodicamente a militância, mas não vai muito além disso.

Meu ponto: diagnóstico errado pressupõe terapias erradas.

Lula disse ainda que vai combater o governo Bolsonaro e "derrotar o fascismo".

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.