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Reinaldo Azevedo

Moro esculpido a bala tem a cara antipobre e antipreto da extrema-direita

Reinaldo Azevedo

12/12/2019 08h18

Moro, fantasiado de boneco inflável de posto de gasolina, recebeu seu rosto desenhado com cartuchos dois dias depois de assassinato a tiros de líderes indígenas (Reprodução)

Sérgio Moro é uma figura muito mais deletéria para a democracia brasileira, o estado de direito e a civilidade do que este impressionante Abraham Weintraub, ministro da Educação. Não fosse por uma penca de outros motivos, seria por este: Weintraub é tratado pela imprensa profissional como uma figura desprezível e irrelevante. Moro ocupa o Olimpo.

Sim, sob os cuidados de Weintraub, está uma pasta gigantesca, que tem o segundo Orçamento da União. Apesar de alguns seres exóticos que a nova gestão espalhou por lá, há uma certa burocracia profissionalizada que permite ao menos o funcionamento vegetativo da pasta. Com Moro, é diferente. Ele ainda é visto por setores consideráveis da imprensa como a voz do bom senso, não importa o que faça. Infelizmente, o mau comando do Ministério da Justiça e suas divisões traz consequências muito mais sérias para o futuro do país do que as falas destrambelhadas do titular da Educação.

Há entre eles a diferença que existe entre um bobalhão, deslumbrado com os holofotes, que um dia há de sumir da vida pública, deixando apenas os vestígios de sua patetice, e o calculista que está, dia após dia, dinamitando garantias do Estado de direito. O primeiro recebe o aplauso da extrema-direita apenas. O segundo fala a uma base bem mais ampla e seduz idiotas informados, inclusive do jornalismo, que têm pouco ou nenhum compromisso com garantias fundamentais desde que o ministro prometa caçar corruptos reais e imaginários.

Weintraub provoca, mesmo em setores mais conservadores, uma reação em defesa das instituições — nem que, de fato, as pessoas estejam procurando só se proteger de sua loucura. Com Moro, essa reação se dá em sentido contrário: parte do público que deveria resistir às violências institucionais que ele propõe faz precisamente o contrário. Não apenas cede ao charme do tabaréu do direito— cujas mangas do paletó engolem as da camisa, conferindo-lhe certa aparência de boneco inflável de posto de gasolina — como ainda aplaude as ações do engolidor de garantias constitucionais.

Sim, nós vimos, de novo, do que é capaz o ministro da Educação. Nesta quarta, na Câmara, ele voltou a acusar as universidades federais de cultivar plantações de maconha e empregou, em uma de suas falas, o verbo "corroboro" em lugar de "reitero". O cara é uma piada ambulante. Exceto quando toma medidas que afetem a educação, deveríamos, nós da imprensa, ignorar o seu narcisismo autopunitivo. Ele percebeu que ser ridículo o transforma em notícia.

Deve, em certo, sentido, padecer de uma versão leve da síndrome desses matadores que depois se suicidam em busca da celebridade. A cada vez que é espicaçado na imprensa em razão de sua mediocridade agressiva, sente, intuo, uma forma perversa de prazer. Psicólogos comportamentalistas certamente nos recomendariam: "Suspendam a reação ao que ele diz para lhe tirar o prazer de se autopunir sendo estúpido". E a sanidade sairia ganhando.

As coisas se passam de outro modo com Moro. Nesta quarta, veio a público uma fotografia em que ele posa ao lado do artesão Rodrigo Camacho, que o presenteou com uma escultura, que traz o seu rosto e as palavras "Lava Jato", feita de cartuchos de bala. A foto foi tirada na segunda-feira passada. Dois dias antes, duas lideranças indígenas — Firmino Silvino Guajajara e Raimundo Bernice Guajajara — tinham sido assassinadas a tiros no Maranhão. Neste ano, os conflitos de terra já mataram 27 pessoas; sete são índios. A Funai é subordinada ao Ministério da Justiça.

O próprio Camacho chegou a dizer que não reivindicava uma foto ao lado do ministro e de sua obra porque compreendia que pudesse causar constrangimentos à autoridade. Mas revelou que o próprio Moro fez questão porque seria uma homenagem à reciclagem. Embora em queda — e isto nada tem a ver com Moro —, o Brasil segue com uma das maiores taxas de homicídio do mundo — chega-se a apenas 8% das autorias. Segundo o Atlas da Violência de 2019, com dados referentes a 2017, foram assassinadas no país, naquele ano, 65.602 mil pessoas, sendo que 47.510 mil (72,4%) foram mortas por tiros. E o ministro da Justiça posa para uma fotografia em que o seu rosto é desenhado por cartuchos.

No seu "pacote anticrime" original, garantia-se aos agentes de segurança a chamada "excludente de ilicitude", que corresponde a dar carta branca para matar. Pouco importam as intenções declaradas, mas os fatos: ao posar para aquela foto, o ministro faz a apologia do armamento e, portanto, brinca com a vida dos brasileiros, em particular daqueles que mais morrem por balas perdidas e achadas: pretos e pobres.

É o mesmo Sérgio Moro que teve a ousadia de redigir um projeto de lei para que senadores lambe-botas apresentassem, como fizeram, tentando violar uma cláusula pétrea da Constituição por meio de legislação ordinária. Fosse dotado de alguma seriedade, convenham, não teria aceitado ser ministros sete meses depois de assinar a ordem de prisão de Lula — pouco importando, nesse caso, inocência ou culpa do petista.

Weintraub degrada a educação, a boa educação, o bom senso, o senso de ridículo, a ciência, a ciência dos fatos, tudo… Um dia passa. Moro degrada a República. E, ainda assim, há quem insista em lustrar os seus sapatos com a língua se preciso. Faz por merecer o culto que lhe devota a extrema-direita.  Mas também pertencem a essa igreja de perversos supostos setores de centro, inclusive da imprensa, que se dedicam, diante do ídolo, a uma genuflexão asquerosa.

Que se note: seus porta-vozes informais no jornalismo também respondem pelo mal. E, moralmente, pelas mortes dos pobres de tão pretos e pretos de tão pobres.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.