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Reinaldo Azevedo

Liberalismo de Guedes é só um reacionarismo. Ou: CPMF, a Rosa e o Jurandir

Reinaldo Azevedo

19/12/2019 07h29

O ministro Paulo Guedes, da Economia, concedeu uma entrevista na noite desta quarta à "Central Globonews". Poderia aqui confrontar as suas previsões do começo do ano com os fatos já quase na virada para 2020. Mas iria parecer uma aposta em que suas prefigurações não vão se cumprir de novo. E, no fim das contas, a coisa não teria grande importância porque os dados estão aí, e o futuro é o que se vai conhecer. Prefiro me fixar no que é mais relevante: o método. Para chegar à constatação de que o "liberalismo" de Paulo Guedes — o seu, reitero! — é ainda mais jurássico do que o socialismo que ele critica.

A propósito: quando os Olavos, Bolsonaros e Guedes se insurgem contra o tal socialismo, estão se referindo a que país? Ao imperialismo da Coreia do Norte? Antes, vamos a alguns outros temas abordados pelo ministro.

NOVA CPMF
Guedes é dono de uma retórica agressiva que pode se confundir com poder de convencimento. O ministro admitiu que o governo estuda criar um imposto para transações financeiras digitais. Mas deixou claro: "Quem falar em CPMF está demitido. Isso não é CPMF".

O ministro decidiu desafiar Julieta. Para ele, a rosa não teria igual perfume se tivesse outro nome. Elegância, e não é de hoje, não chega a ser um traço distintivo do seu caráter. Referindo-se a Marcos Cintra, ex-secretário da Receita, mandou brasa: "O último que falou isso [CPMF] foi demitido".

Então fica combinado. O governo quer criar uma CPMF que nos obriga a chamar a Rosa de Jurandir. E quem não o fizer está demitido. É claro que não se deve desconfiar da seriedade intelectual de Guedes. A questão e como ele trata a seriedade intelectual alheia.

Homem de fala forte, que não teme as palavras — como mostrou quando resolveu especular sobre um novo AI-5 —, o ministro afirmou que o seu Jurandir Digital é tão efetivo que leva até o traficante de drogas e de armas e pagar um pouco. Deveria falar com Sergio Moro: esse ramo do comércio ainda lida com dinheiro vivo…

De toda sorte, parece encantadora essa ideia de tributar o crime organizado. Pode ser uma saída para algumas desonerações pretendidas.

DESIGUALDADE
Disse ele:

"Não olhem para nós procurando o fim da desigualdade social. Dito isso, vamos fazer programas sociais fortes. Nós traremos programas sociais fortes. Eles virão. Estão sendo elaborados."

Um dos entrevistadores quis saber quais. Preferiu fazer segredo. Parece que a coisa passa por uma reformação do "Bolsa Família", que será rebatizado, segundo a lógica da Rosa e do Jurandir, de "Bolsa Brasil". Se e quando o PT voltar ao poder, pode-se resgatar o nome anterior.

Parece que o ministro considera que a tal PEC do Pacto Federativo é um dos instrumentos da redução da desigualdade. Sei. Mas e se Estados e municípios não forem bem-sucedidos na gestão dos recursos? Ele tem a resposta: "A democracia é sempre vigorosa e sábia."

Isso vale para avaliar qualquer período? Não exatamente!

Ficou claro que, quando seus adversários intelectuais venceram as eleições, a democracia lhe pareceu fraca e burra.

PRISÃO COGNITIVA
Da redemocratização à ascensão de Jair Bolsonaro — e, claro!, de Paulo Guedes —, o Brasil se quedou vítima de uma "prisão cognitiva", segundo o doutor. Nesse caso, o resultado das urnas não lhe pareceu nem vigoroso nem sábio. Aos adversários de esquerda, reservou a pecha de "viúvas do socialismo", que não passaria de uma "ideologia da miséria sob a bandeira da fraternidade".

Ainda que assim seja: está em prática onde? Qual sua relevância no mundo?

Ainda que essa crítica tivesse alguma virtude hoje em dia — é velha!!! —, seria o caso de indagar quando foi que se experimentou o socialismo no Brasil.

MEIO AMBIENTE
Até aí, vá lá, estamos no terreno dos embates ideológicos. Esse é o ministro que prometeu zerar o déficit ainda neste ano. Zombei dele à época. Acusaram-me de torcer contra o Brasil. Havia prometido avançar em grandes privatizações. Como esquecer aquela marca de R$ 1 trilhão?

Deixemos que o tempo se encarregue de evidenciar o que procede e o que não procede na fala do encantador de mercados. Mas não se lhe pode conceder a licença para a delinquência intelectual e política.

O ministro admitiu que o Brasil está deixando de receber investimentos em razão da questão ambiental. E, pasmem!, atribuiu a responsabilidade aos derrotados na eleição, que teriam espalhados notícias negativas sobre a área no exterior.

De fato, o país poderia exibir um capital ambiental invejável no mundo. Mas escolheu o caminho da beligerância.  O próprio ministro disse coisas assombrosas ao se referir ao presidente da França, Emmanuel Macron:
"Você vê a dificuldade do Macron para impedir que queimassem a Notre Dame. Queimaram Notre Dame, queimaram a igreja. Ele não conseguiu dar conta do Patrimônio da Humanidade. Tocaram fogo na igreja dele. E ele está preocupado porque estão tocando fogo na floresta.  Nós não temos recursos para policiar a Amazônia, que é do tamanho da Europa. Mas nós vamos tentar."

Ainda que a comparação fizesse sentido — e não faz —, ninguém viu Macron a estimular o incêndio de igrejas. De fato, falta grana. Mas foi o governo brasileiro a abrir mão dos recursos do Fundo Amazônia, sugerindo que a Alemanha, por exemplo, usasse o dinheiro para reflorestar o país.

A atuação de Ricardo Salles na COP 25  submeteu o país a um ridículo inédito no mundo.

GUEDES É UM DINOSSAURO
Guedes se vende como um moderno — atrasados são os outros —, mas a verdade é que o seu "liberalismo" é também um dinossauro. Já foi extinto no resto no mundo. Dá os últimos gemidos no Chile. Morrerá lá também.

Leiam esta fala:
"Se o Macron convencer a comunidade internacional que tem que tomar conta da nossa Amazônia, de repente o Brasil vai pedir também uma força internacional para preservar o patrimônio cultural da humanidade em Paris, porque tocaram fogo na Notre Dame e o Macron não conseguiu impedir".

É conversa que fica bem em moleque malcriado da Internet.

Reparem como o ministro trata a questão indígena, relacionada à ambiental:
"Aqui sai no jornal quando um índio (morre). Não é caso de extermínio, de genocídio. Menos de 0,5% da população é indígena, e eles têm 14% do território nacional. Ninguém preservou ou deu território assim para uma etnia."

E emendou:
"É muito mais importante um recurso de saneamento aqui, onde estão morrendo pessoas, e não lá onde morreu uma árvore".

É verdade. As reservas indígenas ocupam o correspondente a quase 14% do território nacional. Nem vou entrar no mérito da qualidade de vida dos índios.

De toda sorte, aquilo que o Brasil havia conseguido transformar num ativo — sua ainda formidável cobertura vegetal e a política de proteção a indígenas —, que serviu para que governos anteriores aos de Bolsonaro conquistassem mercado para o agronegócio, começou, de fato, a se transformar num peso.

Foram as políticas ambientais pré-Bolsonaro que fizeram do Brasil o maior produtor e exportador de gado bovino do mundo. Com pouco mais de 27% do território dedicados à agropecuária, somos uma potência mundial no setor.

Quem pode nos tirar US$ 10 bilhões das exportações para a China é a guerra comercial empreendida por Trump, não a preservação de florestas a proteção a indígenas.

Morreram sete índios neste ano em conflitos agrário, num total de 27 mortes ligadas à questão. Falta mais do que inteligência emocional a quem opõe preservação a saneamento quando trata de investimentos. Falta informação.

Quem dá de ombros para a morte de um índio ou de uma árvore — e ele convida a imprensa a fazer o mesmo — em nome da superioridade humanista do investimento em saneamento está a fazer duas coisas:
a: não vai atrair, não por isso, recursos para o saneamento;
b: vai estimular a morte de índios e de árvores.

Esse liberalismo de Guedes, reitero, já está morto. Sua critica é antiga, passadista. E, por isso mesmo, ela o coloca em linha com Bolsonaro. O presidente pode não entender a sua matemática, mas certamente fica muito satisfeito quando dá de ombros para índios e árvores.

O liberalismo de Guedes é só uma forma de reacionarismo. E, pois, liberalismo não é.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.